O regresso do aborto
(um artigo de João César das Neves)
Ao fim de menos de um ano, os projectos de lei sobre o aborto voltam a ser apresentados na Assembleia da República. Qualquer pessoa desapaixonada vê que, se esta assembleia, em tão curto período e na mesma legislatura, tomar duas posições opostas sobre uma matéria de tal gravidade e delicadeza, perde muita da sua autoridade e seriedade democráticas. Voltaríamos ao regabofe irresponsável da democracia do século passado. Infelizmente, no Parlamento como noutros lugares, a ânsia de vingar a honra ferida é cega e não recua, nem perante o flagrante ridículo.
Ridículo é coisa que não falta nesta discussão. Um dos argumentos mais incríveis que têm sido usados pelos defensores da liberalização é a acusação de “extremismo” aos seus adversários. Segundo eles, os que recusam o aborto querem consagrar na lei nacional meras opções morais e religiosas particulares e assim atentam contra a liberdade de escolha de todos. Vale a pena clarificar a situação. As pessoas que recusam o aborto não são mais santas que as outras nem querem ensinar moral a ninguém. São simplesmente pessoas iguais a todas, que dizem que matar bebés antes de estes nascerem é perverso.
Note-se, aliás, que esta posição é a dominante em Portugal, desde sempre. E, tanto quanto se saiba, ainda o é hoje, visto que ninguém deixa os portugueses pronunciarem-se sobre isso. Matar bebés antes de nascerem era perverso quando a lei o reprimia. É perverso hoje, quando a lei o tolera, e continuará a ser perverso amanhã, quer os projectos de lei sejam aprovados quer não. Aliás, a questão tem pouco a ver com a lei. O que é mau é o aborto. A lei tem de ser combatida só como um instrumento dessa maldade.
Mas o combate ao aborto não se fica pela lei. Muitas são as instituições que trabalham já hoje, silenciosamente, nas outras frentes, apoiando as mulheres em terríveis situações. Ao contrário dos que apoiam a lei, esses conhecem bem a realidade do aborto. O drama de uma mãe que procura fazer um aborto está, certamente, entre os sofrimentos mais profundos e agudos que alguém pode viver. E é também por isso que a atitude displicente e desresponsabilizadora face ao aborto tem de ser combatida. Em nome do sofrimento de consciência daquelas que o cometem.
Todos estamos de acordo que o flagelo do aborto clandestino é mau. Simplesmente, legalizá-lo não resolve o problema. Ele deixa de ser clandestino, mas continua a ser flagelo. Será que os que recusam a mudança da lei é que são extremistas? Também aqui é preciso analisar a situação actual e o que se propõe de novo, para avaliar em que ponto está a questão.
Actualmente, uma mulher que cometa o aborto, mesmo nas vésperas do parto e sem qualquer razão, pode ter no máximo três anos de prisão (artº 140º, nº 3, do Código Penal). Curiosamente, esta é exactamente a mesma pena para quem destruir a fauna e a flora de forma grave (artº 278º, nº 1). Isso quer dizer que, se alguém matar um lobo-ibérico ou uma águia-pesqueira, se sujeita à mesma pena que quem matar um bebé antes de nascer. E como, no caso do aborto, já existe uma enorme quantidade de situações em que esse crime é “não punível”, é já hoje objectivamente verdade que o bebé antes de nascer tem menos protecção legal que um animal.
Isto é o que diz a lei portuguesa, hoje. Os projectos apresentados querem a liberalização completa. O projecto do PS inclui a liberdade para o aborto, a pedido da mulher, “durante as primeiras dez semanas de gravidez, para preservação da sua integridade moral, dignidade social e ou maternidade responsável”, e até às primeiras 16 semanas de gravidez, “para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica e social”.
Assim, pretende-se que se possa matar um bebé antes de nascer por razões de “dignidade social” e “de natureza económica e social”. Mas os mesmos que pretendem isto são os primeiros a preparar subsídios para impedir que as empresas em dificuldades fechem por razões de natureza económica e social. E não têm dinheiro para dar às mães de forma a impedir que elas matem os seus filhos por razões de natureza económica e social!
Os mesmos que pretendem isto querem proteger o lince da serra da Malcata e o esturjão comum. É proibido matar as espécies protegidas, mesmo com razões de natureza económica e social. Mas os bebés antes de nascerem nem sequer podem ser incluídos na lista dos animais protegidos. Passariam à condição de gado, que pode ser morto por razões de natureza económica e social. O bebé antes de nascer, segundo a lei portuguesa, pode ser perfilhado (artº 1847º, 1854º e 1855º do Código Civil), pode receber doações (artº 952º) e heranças (artº 2033º). Mas a sua morte conta menos do que a de um animal. E depois dizem que são os que se opõem a estes projectos que são extremistas!
No fundo, por detrás deste problema está uma atitude que foi descrita de forma brilhante por Eça de Queirós, no pequeno romance O Mandarim. Aí, como se sabe, conta-se a história de Teodoro, um amanuense do Ministério do Reino, a quem uma noite aparece, sobre a mesa-de-cabeceira, uma campainha. Se ele a tocar, morrerá um mandarim no fundo da China e Teodoro herdará todas as suas riquezas. Tal como Teodoro n’O Mandarim, muitas mulheres pensam que basta uma pequena operação para se verem livres de muitos problemas. Tal como n’O Mandarim, os nossos parlamentares acham que basta aprovar uma lei para acabar o flagelo do aborto. Mas o cadáver do mandarim recusa-se a desaparecer.
A argumentação dos abortistas é hoje igual à do Demónio d’ O Mandarim: “Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais. É eliminar aqui a excrescência para ir ali suprir a falta”. A resposta tem de ser a da consciência do Teodoro de Eça de Queirós: “Ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto dela reside no seu princípio mesmo, e não na abundância das suas manifestações”.
(2 de Fevereiro de 1998)
Ao fim de menos de um ano, os projectos de lei sobre o aborto voltam a ser apresentados na Assembleia da República. Qualquer pessoa desapaixonada vê que, se esta assembleia, em tão curto período e na mesma legislatura, tomar duas posições opostas sobre uma matéria de tal gravidade e delicadeza, perde muita da sua autoridade e seriedade democráticas. Voltaríamos ao regabofe irresponsável da democracia do século passado. Infelizmente, no Parlamento como noutros lugares, a ânsia de vingar a honra ferida é cega e não recua, nem perante o flagrante ridículo.
Ridículo é coisa que não falta nesta discussão. Um dos argumentos mais incríveis que têm sido usados pelos defensores da liberalização é a acusação de “extremismo” aos seus adversários. Segundo eles, os que recusam o aborto querem consagrar na lei nacional meras opções morais e religiosas particulares e assim atentam contra a liberdade de escolha de todos. Vale a pena clarificar a situação. As pessoas que recusam o aborto não são mais santas que as outras nem querem ensinar moral a ninguém. São simplesmente pessoas iguais a todas, que dizem que matar bebés antes de estes nascerem é perverso.
Note-se, aliás, que esta posição é a dominante em Portugal, desde sempre. E, tanto quanto se saiba, ainda o é hoje, visto que ninguém deixa os portugueses pronunciarem-se sobre isso. Matar bebés antes de nascerem era perverso quando a lei o reprimia. É perverso hoje, quando a lei o tolera, e continuará a ser perverso amanhã, quer os projectos de lei sejam aprovados quer não. Aliás, a questão tem pouco a ver com a lei. O que é mau é o aborto. A lei tem de ser combatida só como um instrumento dessa maldade.
Mas o combate ao aborto não se fica pela lei. Muitas são as instituições que trabalham já hoje, silenciosamente, nas outras frentes, apoiando as mulheres em terríveis situações. Ao contrário dos que apoiam a lei, esses conhecem bem a realidade do aborto. O drama de uma mãe que procura fazer um aborto está, certamente, entre os sofrimentos mais profundos e agudos que alguém pode viver. E é também por isso que a atitude displicente e desresponsabilizadora face ao aborto tem de ser combatida. Em nome do sofrimento de consciência daquelas que o cometem.
Todos estamos de acordo que o flagelo do aborto clandestino é mau. Simplesmente, legalizá-lo não resolve o problema. Ele deixa de ser clandestino, mas continua a ser flagelo. Será que os que recusam a mudança da lei é que são extremistas? Também aqui é preciso analisar a situação actual e o que se propõe de novo, para avaliar em que ponto está a questão.
Actualmente, uma mulher que cometa o aborto, mesmo nas vésperas do parto e sem qualquer razão, pode ter no máximo três anos de prisão (artº 140º, nº 3, do Código Penal). Curiosamente, esta é exactamente a mesma pena para quem destruir a fauna e a flora de forma grave (artº 278º, nº 1). Isso quer dizer que, se alguém matar um lobo-ibérico ou uma águia-pesqueira, se sujeita à mesma pena que quem matar um bebé antes de nascer. E como, no caso do aborto, já existe uma enorme quantidade de situações em que esse crime é “não punível”, é já hoje objectivamente verdade que o bebé antes de nascer tem menos protecção legal que um animal.
Isto é o que diz a lei portuguesa, hoje. Os projectos apresentados querem a liberalização completa. O projecto do PS inclui a liberdade para o aborto, a pedido da mulher, “durante as primeiras dez semanas de gravidez, para preservação da sua integridade moral, dignidade social e ou maternidade responsável”, e até às primeiras 16 semanas de gravidez, “para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica e social”.
Assim, pretende-se que se possa matar um bebé antes de nascer por razões de “dignidade social” e “de natureza económica e social”. Mas os mesmos que pretendem isto são os primeiros a preparar subsídios para impedir que as empresas em dificuldades fechem por razões de natureza económica e social. E não têm dinheiro para dar às mães de forma a impedir que elas matem os seus filhos por razões de natureza económica e social!
Os mesmos que pretendem isto querem proteger o lince da serra da Malcata e o esturjão comum. É proibido matar as espécies protegidas, mesmo com razões de natureza económica e social. Mas os bebés antes de nascerem nem sequer podem ser incluídos na lista dos animais protegidos. Passariam à condição de gado, que pode ser morto por razões de natureza económica e social. O bebé antes de nascer, segundo a lei portuguesa, pode ser perfilhado (artº 1847º, 1854º e 1855º do Código Civil), pode receber doações (artº 952º) e heranças (artº 2033º). Mas a sua morte conta menos do que a de um animal. E depois dizem que são os que se opõem a estes projectos que são extremistas!
No fundo, por detrás deste problema está uma atitude que foi descrita de forma brilhante por Eça de Queirós, no pequeno romance O Mandarim. Aí, como se sabe, conta-se a história de Teodoro, um amanuense do Ministério do Reino, a quem uma noite aparece, sobre a mesa-de-cabeceira, uma campainha. Se ele a tocar, morrerá um mandarim no fundo da China e Teodoro herdará todas as suas riquezas. Tal como Teodoro n’O Mandarim, muitas mulheres pensam que basta uma pequena operação para se verem livres de muitos problemas. Tal como n’O Mandarim, os nossos parlamentares acham que basta aprovar uma lei para acabar o flagelo do aborto. Mas o cadáver do mandarim recusa-se a desaparecer.
A argumentação dos abortistas é hoje igual à do Demónio d’ O Mandarim: “Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais. É eliminar aqui a excrescência para ir ali suprir a falta”. A resposta tem de ser a da consciência do Teodoro de Eça de Queirós: “Ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto dela reside no seu princípio mesmo, e não na abundância das suas manifestações”.
(2 de Fevereiro de 1998)
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