sexta-feira, janeiro 19, 2007

Muitas perguntas poucas respostas

(por Maria José Nogueira Pinto)

A questão do aborto não é preta nem branca. Mal é colocada sobre a mesa cria como que uma galáxia cinzenta. É o que a torna geralmente perigosa e também, por isso mesmo, útil para alguns. É que no cinzento se puxam mais facilmente os fios da emoção. No cinzento se tocam, mais arbitrariamente, os acordes da compaixão. Num tempo de informar - para isso serve a campanha do referendo - o que nos devia mover era a trajectória para a claridade, se não a das convicções, pelo menos a dos factos.
O que mudou entre o referendo de 1998 e este? Aumentaram os abortos clandestinos? Não consta. Foram julgadas e presas muitas mulheres? Não consta. Algum organismo credenciado considerou o aborto clandestino, pela sua dimensão, um caso de saúde pública? Não consta.
No outro sentido, porém, muita coisa mudou. A ciência e a tecnologia tornaram a vida humana intra-uterina mais conhecida, ainda mais visível. Essa vida, que desde sempre era apenas percebida só pela mãe, é agora do domínio geral. Sociabilizou-se. Pode ser partilhada, vivida colectivamente, diagnosticada, tratada. Sabe-se se é menina ou menino, dão--lhe um nome à segunda ecografia, emoldura-se e põe-se na sala a primeira "foto" do bebé ainda não nascido, que o ecografista oferece aos pais embasbacados.
Neste tempo, um tempo em que o Homem atingiu um domínio quase absoluto sobre a sua própria espécie, as sociedades perceberam a necessidade de reflectir sobre os autolimites desse domínio. A genética, a bioética foram colocando nas agendas sociais, culturais e políticas esta nova dimensão do humano, sendo visível a preocupação em dar à vida humana embrionária um estatuto de protecção.
O tão proclamado "direito ao corpo" da mulher perde o seu sentido. Esse direito, tão abstracto no seu conteúdo, confronta-se agora com o direito primário, básico, fortíssimo da sobrevivência de uma outra vida.
É que, como sabemos, todas aquelas situações que dão à mulher o direito de decidir, num quadro de equilíbrio entre os dois valores em presença merecedores de protecção jurídica - a vida da mãe e a vida do filho - estão já consagradas na lei actualmente em vigor.
Talvez por isso venham, agora, outros argumentos à colação. Mais concretos, perceptíveis, encaixam naquilo que Ian Mac Ewan chamou "a complicação cada vez maior da condição moderna, o círculo em expansão da compaixão moral".
Comecemos por falar sobre a pobreza, que em Portugal tem costas largas, e é o primeiro desses argumentos. Assenta no princípio de que uma mulher pobre que aborta, nunca tem culpa. Ou, noutra versão, o que é que pode fazer uma mulher pobre quando engravida, senão abortar?
Como a pobreza gera, no geral das pessoas, um sentimento de incomodidade, também ele próximo da culpa, este argumento revela-se até certo ponto, eficaz. Só que este sentimento radica precisamente na ideia, correcta aliás, que pobreza, exclusão, falta de oportunidades podem ser combatidas. E que o aborto não deve constituir-se como a resposta social à condição de pobreza, em Portugal, no século XXI.
Esta pobreza, esta exclusão combatem-se no terreno, na rua, nos bairros, nas escolas, nos centros de formação, nos centros de saúde e não na retórica parlamentar. Mas estes caminhos são mais árduos e por isso num país como o nosso, com bolsas de pobreza persistente e factores acrescidos de exclusão - abandono escolar, desemprego, imigração - onde as políticas sociais variam ao sabor dos Governos, fragmentadas e inconsistentes, o aborto a pedido é mais fácil e mais imediato. É certo que nada resolve, mas a aparência parece ser, para alguns, suficiente.
Aliás, quem tenha convivido com esta problemática sabe que não é a pobreza mas sim o abandono que empurra a mulher para o aborto. Mulheres com fracos recursos e uma rede que as segure ultrapassam uma gravidez imprevista, aceitando-a primeiro, e desejando-a depois. Por outro lado, mulheres com recursos, mas sozinhas, sem apoio afectivo e psicológico, também elas próprias sofrendo de idêntico abandono, são tomadas por um sentimento de medo e um instinto de rejeição.
É por isso que o "sim" vem ampliar a possibilidade de comportamentos irresponsáveis e egoístas por parte de maridos, companheiros, familiares, amigos. Este "sim" serve para encontrar uma saída absolutamente unilateral e solitária, todo o peso da decisão do acto e das suas consequências sobre os ombros de cada mulher, uma só mulher, deixando todos os outros num limbo de irresponsabilidade consentida.
Dada a extensão deste tema, abordarei para a próxima semana os restantes argumentos.