Tribunal Constitucional e a pergunta do referendo
Ainda sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2006, que decidiu sobre a constitucionalidade ou não da pergunta sujeita a referendo sobre a IVG, que agora se aproxima, publicado na íntegra em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html, sublinha-se umas quantas questões que têm passado despercebidas à maioria dos portugueses e que devem ser afloradas:
Em 1.º lugar é mister sublinhar que o Tribunal Constitucional existe para decidir, no meio de outras competências que lhe estão reservadas, se certas e determinadas normas jurídicas em vigor ou projectos e propostas de lei estão ou não conformes com a nossa constituição, aquela que é a norma das normas e a Lei suprema do nosso Estado, aquela a que todas as outras normas devem obediência, sob pena de serem inconstitucionais.
Assim, qualquer norma jurídica que esteja em desconformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) deve ser declarada inconstitucional e, por conseguinte, deve ser revogada (se estiver em vigor) ou impedida de ser promulgada pelo P.R. em situações de fiscalização abstracta da constitucionalidade. Também as perguntas suujeitas a referendo nacional devem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional para se aferir da conformidade das mesmas com a CRP, de modo a que não se ofereça a votação assuntos ou matérias que ponham em causa direitos, liberdades e garantias, protegidos pela CRP e que como tal não se aceita sequer a discussão da validade dos mesmos sob pena de darmos um passo atrás na civilização. Que sentido faria agora perguntar-se aos portugueses se concorda ou não com a pena de morte? Estaráimos certamente a dar um passo atrás, todavia a pergunta é obviamente incostitucional. São direitos constitucionais que demoraram séculos a ser cristalizados nos Estados de Direito Democráticos e que não podem por isso mesmo permitir qualquer demarche no sentido de os pôr em crise.Não nos devemos esquecer que por exemplo em França a ena de morte só foi abulida na década de 80! Mas não estará Portugal a dar um passo atrás no que diz respeito ao Direito à Vida vs Aborto?
O Acórdão do Tribunal Constitucional decidiu por 7 votos contra 6 que a pergunta é constitucional. Isto significa que dos 13 juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional que decidiram sobre esta matéria, 7 concluíram que a pergunta não violava a CRP mas 6 dos Juízes Conselheiros entenderam exactamente em sentido contrário, ou seja, a pergunta é inconstitucional, produzindo cada um dos 6 com os seu fundamentos os conformes votos de vencido. Sobre isto muito haverá para dizer e discutir como por exemplo saber se fará sentido que assuntos que "podem ferir a constituição de morte" possam vingar quando o próprio T.C. se encontra completamente dividido sobre a constitucionalidade de certa norma ou, neste caso, da pergunta a referendar. Por outro lado, não está em causa discutir se certa norma viola uma outra qualquer norma jurídica, não está sequer em causa o mero conflito de normas (de valor idêntico, o que está de facto em cima da mesa é o aparecimento de normas jurídicas liberalizadoras do aborto até às dez semanas que, no caso de a resposta "sim" sair vencedora no referendo, serão colocadas em prática no nosso ordenamento jurídico, ainda que as mesmas sejam totalmente desconformes com a Constituição. Nem nos tempos de Hitler e Staline, de violação diária e vergonhosa de direitos humanos, havia desconformidade entre as suas constituições semânticas e as leis ordinárias. Não violavam o seu direito, o seu direito é que era a barbárie, fonte das maiores atrocidades da Hitória.
Como é evidente, o art. 24.º da CRP estará assim a ser violado. Será que nestas questões não deveria ser exigível que só Acórdãos do T.C. com uma votação por maioria reforçada ou mesmo com unanimidade pudessem atribuir a conformidade constitucional de certa lei ou de certa pergunta a ser sujeita a referendo. É que repito, 6 Juízes do Tribunal Constitucional decidiram que a pergunta era inconstitucional.
Para que não haja dúvidas junto ao texto o voto de vencido do Juíz Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução. A primeira tem a ver com a os requisitos formais e substantivos da convocação de referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão especificamente tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado "nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
2. Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em resposta a estas duas questões, pois entendo, essencialmente, que a pergunta formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos, e também porque entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do n.º 1 do artigo 24º da Constituição.
3. As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo explicam-se pelo peso que, nas democracias ocidentais, é conferido à opinião pública expressa em sufrágio universal, fora dos momentos eleitorais determinados pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim, essencial – ao fim e ao cabo para garantir a genuinidade da resposta dos cidadãos –, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actualmente, a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez (artigo 142º do Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não punibilidade já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os dados da questão, a pergunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.
4. Quanto à segunda questão, entendo muito simplesmente que se a Constituição, no aludido preceito, protege, sem excepção, a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas.
5. Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da decisão.
Carlos Pamplona de Oliveira
1. Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução. A primeira tem a ver com a os requisitos formais e substantivos da convocação de referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão especificamente tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado "nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
2. Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em resposta a estas duas questões, pois entendo, essencialmente, que a pergunta formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos, e também porque entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do n.º 1 do artigo 24º da Constituição.
3. As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo explicam-se pelo peso que, nas democracias ocidentais, é conferido à opinião pública expressa em sufrágio universal, fora dos momentos eleitorais determinados pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim, essencial – ao fim e ao cabo para garantir a genuinidade da resposta dos cidadãos –, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actualmente, a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez (artigo 142º do Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não punibilidade já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os dados da questão, a pergunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.
4. Quanto à segunda questão, entendo muito simplesmente que se a Constituição, no aludido preceito, protege, sem excepção, a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas.
5. Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da decisão.
Carlos Pamplona de Oliveira
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