segunda-feira, outubro 22, 2007

O OVO DA SERPENTE

(por João César das Neves)

Na passada segunda-feira, o título principal do Diário de Notícias era: "Rastreio pré-natal falha em 60% das grávidas." O texto alertava de que a maioria das futuras mães não faz testes para despistar a trissomia 21 e outros problemas cromossomáticos. As causas identificadas para a omissão são o custo do exame, não comparticipação do Estado, falta de laboratórios capacitados e de critérios definidos, além de "mulheres com baixa escolaridade e fracos recursos económicos" (DN, 15/10/2007).
À primeira vista trata-se de mais um problema de saúde pública onde o atraso e pobreza do País criam graves efeitos sociais. Mas há um pequeno detalhe que o artigo não refere: a trissomia 21 e os problemas cromossomáticos não têm cura. Alguns tratamentos precoces ajudam, mas pouco há a fazer à criança quando se detecta esse tipo de males. Além do aborto, claro. A única forma, como diz o texto, de tornar os "casos de trissomia evitáveis nos fetos de jovens grávidas" é matar a criança. Porquê então fazer esta divulgação, se não é para promover o aborto?
Ninguém imagina o pavoroso sofrimento dos pais que descobrem no seu filho esta terrível doença. Mas a maior parte das distorções de cromossomas é inevitável e incontrolável. Pior ainda, como a amniocentese e outros testes recomendados têm graves riscos para a saúde da mãe e, sobretudo, da criança, a sua promoção pode tornar-se um real perigo para a saúde pública. Dado que, ainda por cima, existem "muitos falsos positivos (um em 20)", esta acaba por ser uma forma de suscitar a morte de crianças saudáveis, por mera precaução dos pais.
O incentivo ao aborto é evidente. E aberto: o procurador-geral da República e o ministro da Saúde tentam agora forçar a Ordem dos Médicos a mudar o seu código deontológico nesse tema por ser ilegal (DN, 18/10/2007).
Este ano, o País aprovou a liberalização do aborto. Hoje calaram-se os argumentos, discussões, elaborações ideológicas. Mas coisas destas nunca se vão embora. Quando fechamos os olhos à violação dos direitos humanos ela cresce sempre mais. Vive-se a lenta degradação de carácter, a terrível descida na infâmia.
Há 30 anos, nos fins de 1977, o genial Ingmar Bergman, falecido no passado 30 de Julho, apresentou o filme O Ovo da Serpente. A acção passa-se na Berlim de Novembro de 1923 que vive a euforia do fim da guerra. Nesse ambiente de liberdade, um médico, aparentemente apostado na cura, contribui com as suas experiências pseudo-científicas para destruir seres humanos. Faltava ainda muito para surgir o nazismo, mas já se entreviam os traços do monstro em gestação. Como através da membrana transparente do ovo da cobra.
Que semelhança entre os horrores nazis e a situação actual do aborto em Portugal? As diferenças são abissais, mas um ponto é comum. Precisamente o de Bergman. Na Berlim de 1923, como hoje em Lisboa, proclamavam-se os direitos humanos, elaborava-se a filosofia política, defendia-se a liberdade e a democracia. Ao mesmo tempo tolerava-se a gestação de um monstro. Foi assim que a sofisticada Alemanha, a terra de Goethe e Beethoven, caiu na decadência máxima da civilização.
Ouvir a elevação das nossas afirmações actuais contra a pobreza, das manifestações a favor da dignidade humana, da firmeza na justiça e solidariedade é ficar orgulhoso dos nossos valores. Desde que não se note o montinho de cadáveres minúsculos que sai pelas traseiras das clínicas. Como na democracia alemã de 1923, é essa porta por onde entra o monstro.
Este paralelo entre o aborto e o nazismo é feito num livro que acaba de sair. O volume Ao Gólgota! - A Liberalização do Aborto e o Nazismo (Editora Crucifixus, 2007) reúne os artigos que o franciscano padre Nuno Serras Pereira publicou na Internet no último ano e meio.
Como pode alguém comparar a nossa situação com o horror do nazismo? Passa pela cabeça essa semelhança? Se pensa assim, por favor não se esqueça que esse era precisamente o sentimento que tinha a despreocupada Berlim de 1923. Esse é o enigma do ovo da serpente.