Dizer não à irresponsabilidade
(artigo de João César das Neves)
Muitas pessoas votarão "sim" no próximo referendo do aborto só pela esperança de arrumar a questão de vez. No labirinto de manipulações, falácias e enganos em que este debate se tornou, esta é uma das ilusões mais amargas.
Ninguém tem dúvidas de que tratamos de uma questão que o País não quer tratar. A esmagadora abstenção no primeiro referendo em 1998 (68%) mostrou-o à saciedade e a apatia recente confirma-o. Trata-se de um problema que uma elite caprichosamente impõe à população, mergulhada numa conjuntura complexa, difícil e exigente.
Um punhado de forças políticas convenceu-se de que liberalizar o aborto constitui um imperativo de civilização e afirmou estar disposto a levantar sucessivamente esta exigência até que o País esteja de acordo consigo (ou, em certos meios mais extremistas, a forçá-lo na lei, mesmo que o povo se atreva a não concordar). Assim, espera-se que existam referendos até o resultado ser "sim", e que depois não haja mais nenhum.
O comodismo é uma das forças mais poderosas em Portugal. Perante este desinteresse da maioria do País, uma das opiniões que mais contarão no próximo dia 11 é a que afirma que o melhor é votar "sim" para ver se se acaba com isto e nos deixam dedicar ao que importa. Esta visão, extremamente atraente, não passa de uma das maiores tolices que têm surgido numa discussão cheia delas. De facto, a realidade é precisamente a oposta.
Se o "não ao aborto livre" vencer no dia 11 de Fevereiro, existe uma forte possibilidade de que a questão política fique resolvida. Duas derrotas sucessivas fazem hesitar até o fanático mais ardente. Os militantes histéricos quererão repetir a proeza, mas as forças sérias terão muitas dúvidas em arriscar terceira derrota. Além de que o clima internacional sobre o aborto está a mudar lentamente, e essa vitória da vida e responsabilidade em Portugal seria mais um passo na evolução. Tem de dizer--se que uma terceira tentativa para liberalizar o aborto entre nós é bastante improvável.
Pelo contrário, se o "sim" vencer, o aborto promete nunca mais deixar a actualidade mediática.
A razão principal não viria do lado partidário, aliás por razões semelhantes às invocadas no caso inverso. Embora se deva dizer que, com um empate entre os dois referendos, ambos certamente não vinculativos, seria muito mais provável existir um terceiro. Mas seria sobretudo a partir da vida real que o problema viria assombrar a política. Sobretudo no sector da saúde.
A primeira coisa que se passaria, se o "sim" eventualmente ganhasse, seria a manifestação do embuste da pergunta. Embora se fale de "despenalização", nada no sector penal ou judicial se veria modificado. Toda a frenética actividade daquilo que seria a real liberalização do aborto situar-se-ia nos hospitais.
Mas a liberalização está longe de ser garantida pela simples despenalização legal. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para não falar do plurimilenar Juramento de Hipócrates, afirma que "constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia" (art. 47.º). Como poderão então médicos executar a imposição legal? Apareceria artificialmente uma nova luta intensa no meio hospitalar, que certamente não precisa de mais problemas.
Alguns dizem que esse documento vai ser revisto. Mas que devemos pensar de uma classe que muda as suas regras éticas ao sabor das votações e das modas culturais? Mais importante, como se pode entender que alguém que dedicou a vida à saúde dos outros, que estudou durante anos para ser agente da luta contra a dor e a doença, aceite uma carreira a fazer abortos? Como entender que os hospitais, centros de vida e saúde, passem a ser locais de morte higiénica?
O embate seria certamente muito doloroso. Haveria médicos suspensos por objecção de consciência, zangas entre serviços e direcções hospitalares, discussões entre colegas. Isto para não falar das manifestações e dos aproveitamentos políticos. Nunca se deve esquecer que nos EUA e em alguns países europeus, onde a liberalização não foi feita por referendos, nunca mais houve paz desde que ela foi imposta. Em Portugal, depois de debate tão acalorado, a sua eventual implantação criaria problemas muito depois de 2007.
Este é portanto um caso feliz em que, se Portugal seguir a sua consciência e valores tradicionais, também evita muitas zangas e dolorosas soluções. O único voto que arruma a questão é dizer não à tentação facilitista.
Muitas pessoas votarão "sim" no próximo referendo do aborto só pela esperança de arrumar a questão de vez. No labirinto de manipulações, falácias e enganos em que este debate se tornou, esta é uma das ilusões mais amargas.
Ninguém tem dúvidas de que tratamos de uma questão que o País não quer tratar. A esmagadora abstenção no primeiro referendo em 1998 (68%) mostrou-o à saciedade e a apatia recente confirma-o. Trata-se de um problema que uma elite caprichosamente impõe à população, mergulhada numa conjuntura complexa, difícil e exigente.
Um punhado de forças políticas convenceu-se de que liberalizar o aborto constitui um imperativo de civilização e afirmou estar disposto a levantar sucessivamente esta exigência até que o País esteja de acordo consigo (ou, em certos meios mais extremistas, a forçá-lo na lei, mesmo que o povo se atreva a não concordar). Assim, espera-se que existam referendos até o resultado ser "sim", e que depois não haja mais nenhum.
O comodismo é uma das forças mais poderosas em Portugal. Perante este desinteresse da maioria do País, uma das opiniões que mais contarão no próximo dia 11 é a que afirma que o melhor é votar "sim" para ver se se acaba com isto e nos deixam dedicar ao que importa. Esta visão, extremamente atraente, não passa de uma das maiores tolices que têm surgido numa discussão cheia delas. De facto, a realidade é precisamente a oposta.
Se o "não ao aborto livre" vencer no dia 11 de Fevereiro, existe uma forte possibilidade de que a questão política fique resolvida. Duas derrotas sucessivas fazem hesitar até o fanático mais ardente. Os militantes histéricos quererão repetir a proeza, mas as forças sérias terão muitas dúvidas em arriscar terceira derrota. Além de que o clima internacional sobre o aborto está a mudar lentamente, e essa vitória da vida e responsabilidade em Portugal seria mais um passo na evolução. Tem de dizer--se que uma terceira tentativa para liberalizar o aborto entre nós é bastante improvável.
Pelo contrário, se o "sim" vencer, o aborto promete nunca mais deixar a actualidade mediática.
A razão principal não viria do lado partidário, aliás por razões semelhantes às invocadas no caso inverso. Embora se deva dizer que, com um empate entre os dois referendos, ambos certamente não vinculativos, seria muito mais provável existir um terceiro. Mas seria sobretudo a partir da vida real que o problema viria assombrar a política. Sobretudo no sector da saúde.
A primeira coisa que se passaria, se o "sim" eventualmente ganhasse, seria a manifestação do embuste da pergunta. Embora se fale de "despenalização", nada no sector penal ou judicial se veria modificado. Toda a frenética actividade daquilo que seria a real liberalização do aborto situar-se-ia nos hospitais.
Mas a liberalização está longe de ser garantida pela simples despenalização legal. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para não falar do plurimilenar Juramento de Hipócrates, afirma que "constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia" (art. 47.º). Como poderão então médicos executar a imposição legal? Apareceria artificialmente uma nova luta intensa no meio hospitalar, que certamente não precisa de mais problemas.
Alguns dizem que esse documento vai ser revisto. Mas que devemos pensar de uma classe que muda as suas regras éticas ao sabor das votações e das modas culturais? Mais importante, como se pode entender que alguém que dedicou a vida à saúde dos outros, que estudou durante anos para ser agente da luta contra a dor e a doença, aceite uma carreira a fazer abortos? Como entender que os hospitais, centros de vida e saúde, passem a ser locais de morte higiénica?
O embate seria certamente muito doloroso. Haveria médicos suspensos por objecção de consciência, zangas entre serviços e direcções hospitalares, discussões entre colegas. Isto para não falar das manifestações e dos aproveitamentos políticos. Nunca se deve esquecer que nos EUA e em alguns países europeus, onde a liberalização não foi feita por referendos, nunca mais houve paz desde que ela foi imposta. Em Portugal, depois de debate tão acalorado, a sua eventual implantação criaria problemas muito depois de 2007.
Este é portanto um caso feliz em que, se Portugal seguir a sua consciência e valores tradicionais, também evita muitas zangas e dolorosas soluções. O único voto que arruma a questão é dizer não à tentação facilitista.
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