domingo, janeiro 28, 2007

O voto sobre o aborto

(por Rui Machete)

Nos bons velhos tempos dos finais do século XIX, quando a sociologia incipiente dava os seus primeiros passos e em Portugal o romantismo popular ainda não se tinha apagado, dizia-se, a propósito dos comportamentos desviantes das mulheres que abortavam ou que abandonavam os recém-nascidos, que a infeliz era vítima da sociedade. Remetia-se assim a culpa para um ente colectivo vago, a que todos pertenciam, sem que a ninguém individualmente pudesse ser imputada a responsabilidade pelo acto, ao mesmo tempo que se desculpabilizava o agente. Hoje, em que a consciência da liberdade e a autonomia individuais se afirmaram muito mais - pelo menos em termos de dever ser -, já não é credível essa remissão. Mas continua a ser verdade que a ambiência social e económica em que a pessoa se move cria condicionalismos e constrangimentos de vária ordem com impacto nas decisões individuais. Só que é possível fazer uma análise cada vez mais fina das diversas situações.
Vêm estas considerações a propósito do aborto, matéria delicada e controversa, por a opinião que sobre ela se emita concretizar concepções de vida e opções filosóficas próprias de cada um, às vezes sem plena consciência dos seus contornos exactos e das exigências da sua coerência interna.
Tudo isso tem vindo a ser evidenciado, como é sabido, a propósito do debate sobre esta infeliz ideia de voltar a fazer um referendo sobre o aborto. As questões complexas são sempre mal resolvidas através de decisões simplistas de sim ou não, a não ser que se reconduzam apenas à praxis, a decisões políticas a resolver pelo voto.
Seja como for, o referendo sobre o aborto vai realizar-se e o dia está fixado. Justifica-se, por isso, que a questão se discuta e que cada um, se assim o entender, se pronuncie sobre ela. É o que passo a fazer, por forma necessariamente sucinta. Aceito como ponto de partida que os católicos, mesmo se eventualmente maioritários, não devam impor os seus princípios a uma sociedade que não se rege por normas confessionais e que devem procurar soluções compromissórias de convivência.
Começo por observar existir um ponto sobre o qual deveria haver consenso alargado: em princípio, a mulher que aborta não devia ser penalmente sancionada. O uso da sanção penal parece inadequado como punição e como prevenção de um acto que é em si, fisicamente perigoso, pelo menos potencialmente, e contrário ao sentimento natural da mulher, que é o de ser mãe. Apenas razões concretas ponderosas da vida pelo menos quod plerumque fit , explicam que se tome essa decisão. Na teoria da acção penal, a exclusão de culpa, formulada em termos generosos - como simples presunção, isto é, sem averiguação dos factos concretos -, permite obter esse resultado. Restaria, quanto aos médicos e parteiras, encontrar fórmulas de modelar a comparticipação, de modo a obviar às situações mais chocantes. Foi aliás, segundo suponho, uma sugestão já em tempos apresentada pelo prof. Diogo Freitas do Amaral.
Admito ainda que a não aplicação da sanção criminal cesse a partir de um determinado período de tempo, quando a maturidade e visibilidade do feto tornassem a operação mais perigosa ou escandalizassem a opinião pública. A data agora mencionada na pergunta do referendo poderia ser uma boa fronteira entre o admissível e o proibido.
Nestes termos, uma simples revisão do Código Penal seria suficiente e dispensaria um referendo. É uma transacção entre duas teses conflituantes que, no domínio religioso de para quem como eu, católico, acredita que a vida é um dom de Deus, não merece aplauso e que os libertários considerarão insuficiente. Mas a sociedade civil e o Estado aconfessional em que vivemos requerem um compromisso que permita a convivência entre uns e outros.
Salvaguardar-se-ia, todavia, um ponto essencial: que o aborto continuasse a ser condenado em princípio e que não fosse encarado como solução normal do controlo da natalidade. Continuaria a atribuir-se-lhe um valor claramente negativo, bem diferente de uma posição de indiferença ou mesmo até de aprovação.
Este último ponto parecerá a alguns despiciendo, mas está muito longe de o ser.
A ideia de que a liberdade individual tem apenas os limites ocasionais de não prejudicar a liberdade dos outros ou o interesse público concebido como síntese de interesses particulares prevalecentes afigura-se-me profundamente perigosa e inaceitável, mesmo de um ponto de vista não religioso. A liberdade do homem é condição sine qua non da sua realização como pessoa e marca essencial da sua dignidade.
A vida é um pressuposto que torna possível a realização da pessoa humana. Por isso constitui um valor tão precioso. Razão também por que o direito penal incrimina o suicídio e só por razões humanitárias não pune a sua tentativa. Já quanto à comparticipação na autodestruição da vida se põem problemas similares aos do aborto, como se tem visto a propósito do difícil problema da eutanásia.
O direito a dispor do corpo tem limites, impostos pela própria dignidade da pessoa humana. Por maioria de razão, existem pelo menos limitações a dispor de uma vida alheia. Liberalizar o aborto, considerando-o como um outro qualquer banal método anticoncepcional e deixando de o qualificar juridicamente como um desvalor, parece um erro grave, revelador de uma atitude cega perante a importância da vida com inevitáveis consequências anti-sociais.
É pena que muitos partidários do sim confundam a necessidade de não punir a mulher que aborta, com o libertarismo ou o relativismo ético que a despreocupada equiparação do aborto aos meios anticoncepcionais representa.
A tolerância, sem cedência nos princípios, deve ser uma nota dominante nos comportamentos de cristãos e de agnósticos numa sociedade democrática. Uns e outros têm de encontrar a contenção que permita evitar as agressões no espaço social comum que ocupam.
Pela inadequação da solução de mudança admitida no próximo referendo, votarei inequivocamente não.