O voto sobre o aborto
(por Rui Machete)
Nos bons velhos tempos dos finais do século XIX, quando a sociologia incipiente dava os seus primeiros passos e em Portugal o romantismo popular ainda não se tinha apagado, dizia-se, a propósito dos comportamentos desviantes das mulheres que abortavam ou que abandonavam os recém-nascidos, que a infeliz era vítima da sociedade. Remetia-se assim a culpa para um ente colectivo vago, a que todos pertenciam, sem que a ninguém individualmente pudesse ser imputada a responsabilidade pelo acto, ao mesmo tempo que se desculpabilizava o agente. Hoje, em que a consciência da liberdade e a autonomia individuais se afirmaram muito mais - pelo menos em termos de dever ser -, já não é credível essa remissão. Mas continua a ser verdade que a ambiência social e económica em que a pessoa se move cria condicionalismos e constrangimentos de vária ordem com impacto nas decisões individuais. Só que é possível fazer uma análise cada vez mais fina das diversas situações.
Vêm estas considerações a propósito do aborto, matéria delicada e controversa, por a opinião que sobre ela se emita concretizar concepções de vida e opções filosóficas próprias de cada um, às vezes sem plena consciência dos seus contornos exactos e das exigências da sua coerência interna.
Tudo isso tem vindo a ser evidenciado, como é sabido, a propósito do debate sobre esta infeliz ideia de voltar a fazer um referendo sobre o aborto. As questões complexas são sempre mal resolvidas através de decisões simplistas de sim ou não, a não ser que se reconduzam apenas à praxis, a decisões políticas a resolver pelo voto.
Seja como for, o referendo sobre o aborto vai realizar-se e o dia está fixado. Justifica-se, por isso, que a questão se discuta e que cada um, se assim o entender, se pronuncie sobre ela. É o que passo a fazer, por forma necessariamente sucinta. Aceito como ponto de partida que os católicos, mesmo se eventualmente maioritários, não devam impor os seus princípios a uma sociedade que não se rege por normas confessionais e que devem procurar soluções compromissórias de convivência.
Começo por observar existir um ponto sobre o qual deveria haver consenso alargado: em princípio, a mulher que aborta não devia ser penalmente sancionada. O uso da sanção penal parece inadequado como punição e como prevenção de um acto que é em si, fisicamente perigoso, pelo menos potencialmente, e contrário ao sentimento natural da mulher, que é o de ser mãe. Apenas razões concretas ponderosas da vida pelo menos quod plerumque fit , explicam que se tome essa decisão. Na teoria da acção penal, a exclusão de culpa, formulada em termos generosos - como simples presunção, isto é, sem averiguação dos factos concretos -, permite obter esse resultado. Restaria, quanto aos médicos e parteiras, encontrar fórmulas de modelar a comparticipação, de modo a obviar às situações mais chocantes. Foi aliás, segundo suponho, uma sugestão já em tempos apresentada pelo prof. Diogo Freitas do Amaral.
Admito ainda que a não aplicação da sanção criminal cesse a partir de um determinado período de tempo, quando a maturidade e visibilidade do feto tornassem a operação mais perigosa ou escandalizassem a opinião pública. A data agora mencionada na pergunta do referendo poderia ser uma boa fronteira entre o admissível e o proibido.
Nestes termos, uma simples revisão do Código Penal seria suficiente e dispensaria um referendo. É uma transacção entre duas teses conflituantes que, no domínio religioso de para quem como eu, católico, acredita que a vida é um dom de Deus, não merece aplauso e que os libertários considerarão insuficiente. Mas a sociedade civil e o Estado aconfessional em que vivemos requerem um compromisso que permita a convivência entre uns e outros.
Salvaguardar-se-ia, todavia, um ponto essencial: que o aborto continuasse a ser condenado em princípio e que não fosse encarado como solução normal do controlo da natalidade. Continuaria a atribuir-se-lhe um valor claramente negativo, bem diferente de uma posição de indiferença ou mesmo até de aprovação.
Este último ponto parecerá a alguns despiciendo, mas está muito longe de o ser.
A ideia de que a liberdade individual tem apenas os limites ocasionais de não prejudicar a liberdade dos outros ou o interesse público concebido como síntese de interesses particulares prevalecentes afigura-se-me profundamente perigosa e inaceitável, mesmo de um ponto de vista não religioso. A liberdade do homem é condição sine qua non da sua realização como pessoa e marca essencial da sua dignidade.
A vida é um pressuposto que torna possível a realização da pessoa humana. Por isso constitui um valor tão precioso. Razão também por que o direito penal incrimina o suicídio e só por razões humanitárias não pune a sua tentativa. Já quanto à comparticipação na autodestruição da vida se põem problemas similares aos do aborto, como se tem visto a propósito do difícil problema da eutanásia.
O direito a dispor do corpo tem limites, impostos pela própria dignidade da pessoa humana. Por maioria de razão, existem pelo menos limitações a dispor de uma vida alheia. Liberalizar o aborto, considerando-o como um outro qualquer banal método anticoncepcional e deixando de o qualificar juridicamente como um desvalor, parece um erro grave, revelador de uma atitude cega perante a importância da vida com inevitáveis consequências anti-sociais.
É pena que muitos partidários do sim confundam a necessidade de não punir a mulher que aborta, com o libertarismo ou o relativismo ético que a despreocupada equiparação do aborto aos meios anticoncepcionais representa.
A tolerância, sem cedência nos princípios, deve ser uma nota dominante nos comportamentos de cristãos e de agnósticos numa sociedade democrática. Uns e outros têm de encontrar a contenção que permita evitar as agressões no espaço social comum que ocupam.
Pela inadequação da solução de mudança admitida no próximo referendo, votarei inequivocamente não.
Nos bons velhos tempos dos finais do século XIX, quando a sociologia incipiente dava os seus primeiros passos e em Portugal o romantismo popular ainda não se tinha apagado, dizia-se, a propósito dos comportamentos desviantes das mulheres que abortavam ou que abandonavam os recém-nascidos, que a infeliz era vítima da sociedade. Remetia-se assim a culpa para um ente colectivo vago, a que todos pertenciam, sem que a ninguém individualmente pudesse ser imputada a responsabilidade pelo acto, ao mesmo tempo que se desculpabilizava o agente. Hoje, em que a consciência da liberdade e a autonomia individuais se afirmaram muito mais - pelo menos em termos de dever ser -, já não é credível essa remissão. Mas continua a ser verdade que a ambiência social e económica em que a pessoa se move cria condicionalismos e constrangimentos de vária ordem com impacto nas decisões individuais. Só que é possível fazer uma análise cada vez mais fina das diversas situações.
Vêm estas considerações a propósito do aborto, matéria delicada e controversa, por a opinião que sobre ela se emita concretizar concepções de vida e opções filosóficas próprias de cada um, às vezes sem plena consciência dos seus contornos exactos e das exigências da sua coerência interna.
Tudo isso tem vindo a ser evidenciado, como é sabido, a propósito do debate sobre esta infeliz ideia de voltar a fazer um referendo sobre o aborto. As questões complexas são sempre mal resolvidas através de decisões simplistas de sim ou não, a não ser que se reconduzam apenas à praxis, a decisões políticas a resolver pelo voto.
Seja como for, o referendo sobre o aborto vai realizar-se e o dia está fixado. Justifica-se, por isso, que a questão se discuta e que cada um, se assim o entender, se pronuncie sobre ela. É o que passo a fazer, por forma necessariamente sucinta. Aceito como ponto de partida que os católicos, mesmo se eventualmente maioritários, não devam impor os seus princípios a uma sociedade que não se rege por normas confessionais e que devem procurar soluções compromissórias de convivência.
Começo por observar existir um ponto sobre o qual deveria haver consenso alargado: em princípio, a mulher que aborta não devia ser penalmente sancionada. O uso da sanção penal parece inadequado como punição e como prevenção de um acto que é em si, fisicamente perigoso, pelo menos potencialmente, e contrário ao sentimento natural da mulher, que é o de ser mãe. Apenas razões concretas ponderosas da vida pelo menos quod plerumque fit , explicam que se tome essa decisão. Na teoria da acção penal, a exclusão de culpa, formulada em termos generosos - como simples presunção, isto é, sem averiguação dos factos concretos -, permite obter esse resultado. Restaria, quanto aos médicos e parteiras, encontrar fórmulas de modelar a comparticipação, de modo a obviar às situações mais chocantes. Foi aliás, segundo suponho, uma sugestão já em tempos apresentada pelo prof. Diogo Freitas do Amaral.
Admito ainda que a não aplicação da sanção criminal cesse a partir de um determinado período de tempo, quando a maturidade e visibilidade do feto tornassem a operação mais perigosa ou escandalizassem a opinião pública. A data agora mencionada na pergunta do referendo poderia ser uma boa fronteira entre o admissível e o proibido.
Nestes termos, uma simples revisão do Código Penal seria suficiente e dispensaria um referendo. É uma transacção entre duas teses conflituantes que, no domínio religioso de para quem como eu, católico, acredita que a vida é um dom de Deus, não merece aplauso e que os libertários considerarão insuficiente. Mas a sociedade civil e o Estado aconfessional em que vivemos requerem um compromisso que permita a convivência entre uns e outros.
Salvaguardar-se-ia, todavia, um ponto essencial: que o aborto continuasse a ser condenado em princípio e que não fosse encarado como solução normal do controlo da natalidade. Continuaria a atribuir-se-lhe um valor claramente negativo, bem diferente de uma posição de indiferença ou mesmo até de aprovação.
Este último ponto parecerá a alguns despiciendo, mas está muito longe de o ser.
A ideia de que a liberdade individual tem apenas os limites ocasionais de não prejudicar a liberdade dos outros ou o interesse público concebido como síntese de interesses particulares prevalecentes afigura-se-me profundamente perigosa e inaceitável, mesmo de um ponto de vista não religioso. A liberdade do homem é condição sine qua non da sua realização como pessoa e marca essencial da sua dignidade.
A vida é um pressuposto que torna possível a realização da pessoa humana. Por isso constitui um valor tão precioso. Razão também por que o direito penal incrimina o suicídio e só por razões humanitárias não pune a sua tentativa. Já quanto à comparticipação na autodestruição da vida se põem problemas similares aos do aborto, como se tem visto a propósito do difícil problema da eutanásia.
O direito a dispor do corpo tem limites, impostos pela própria dignidade da pessoa humana. Por maioria de razão, existem pelo menos limitações a dispor de uma vida alheia. Liberalizar o aborto, considerando-o como um outro qualquer banal método anticoncepcional e deixando de o qualificar juridicamente como um desvalor, parece um erro grave, revelador de uma atitude cega perante a importância da vida com inevitáveis consequências anti-sociais.
É pena que muitos partidários do sim confundam a necessidade de não punir a mulher que aborta, com o libertarismo ou o relativismo ético que a despreocupada equiparação do aborto aos meios anticoncepcionais representa.
A tolerância, sem cedência nos princípios, deve ser uma nota dominante nos comportamentos de cristãos e de agnósticos numa sociedade democrática. Uns e outros têm de encontrar a contenção que permita evitar as agressões no espaço social comum que ocupam.
Pela inadequação da solução de mudança admitida no próximo referendo, votarei inequivocamente não.
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