terça-feira, novembro 07, 2006

O regresso do aborto

(Um artigo de João César das Neves, no semanário “O Diabo” de hoje)

Tudo indica que vamos voltar a ter de travar a batalha do aborto. As forças políticas no poder, motivadas por imposições ideológicas e velhos orgulhos feridos, e ao arrepio de qualquer consideração de interesse nacional, recolocaram um referendo sobre o tema na nossa agenda política.
Muitas pessoas sentem-se enfadadas e incomodadas com o tema. Ter de voltar a ouvir debates acirrados, de seguir argumentações empasteladas, de acompanhar descrições dolorosas e pungentes é algo que enfastia o eleitorado, sobretudo em época em que não faltam dificuldades quotidianas para ocupar a atenção. A tentação da abstenção e alheamento é grande.
Mas o debate à volta da despenalização do aborto não é uma simples discussão política. Não se trata de uma teimosia de alguns, de uma luta de extremismos, d(i uma causa lateral. É um confronto civilizacional decisivo, onde se joga o futuro da nossa sociedade. O que está em causa não é só a sorte de pessoas, mas toda a nossa cultura, porque o que se digladiam são duas formas opostas de ver o humano.
O mundo mudou muito nos últimos séculos, mas o aborto hoje coloca-se, basicamente, como sempre se colocou. É verdade que a Medicina abriu novas perspectivas e criou novas formas de matar o feto, mas esse facto é alheio ao problema moral envolvido. O essencial da questão do aborto é igual ao que era no Paleolítico ou na Antiguidade. Se isto é assim, porque razão existe hoje uma discussão tão acalorada sobre um problema que se mantém há milénios? Porque razão colocar agora de forma totalmente nova uma questão não tem nada de novo? A razão não está, não pode estar, na realidade que mudou, mas está antes na nova moral que a sociedade moderna criou para si.
A sociedade moderna, ao lado das melhorias tecnológicas e sócio-económicas, criou um sentimento acrescido de egoísmo e de comodismo. Como a técnica nos resolveu muitos problemas, muitos passaram a achar razoável usar o crime, até de morte, para resolver os problemas que ainda têm. A discussão actual sobre o aborto não nasce dos avanços técnicos do homem moderno, mas do seu recuo moral. A ponto de negar a vida ao embrião humano, por "razões de natureza económica e social", como dizem as leis de liberalização.
A origem do problema é, sem dúvida, civilizacional. Como disse o Papa João Paulo II, "Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres.» (Evangelium Vitae 11).
Ao mesmo tempo, é importante não esquecer que debates destes foram frequentes em todas as épocas na evolução da civilização. A abolição da escravatura, da pena de morte, da superioridade aristocrática, da discriminação das mulheres ou dos negros, entre tantas outras, foram temas que ocuparam os nossos antepassados. Hoje cabe-nos este combate na defesa dos direitos fundamentais da pessoa.
Assim, temos de ver este debate que se aproxima como uma grande oportunidade para defender os valores da vida e da família perante uma atitude hedonista e destrutiva, que ameaça vários dos pilares fundamentais da nossa cultura. Um dia os nossos filhos e netos vão julgar-nos severamente pela atitude que tomarmos hoje nesta discussão, tal como hoje avaliamos os nossos avós pelas deles. Cada geração trava, à sua maneira, a eterna luta pela civilização contra a barbárie.