quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Um debate cada vez mais útil

(por Manuel Queiró)

1.Apesar das motivações políticas que estiveram por detrás da programação deste referendo, e a que me referi na altura própria, não deixo de constatar alguma utilidade no debate a que ele acabou por dar lugar. É claro que haverá sempre críticos da forma como ele decorre, mas estou em crer que esses são, na sua maioria, os que no fundo têm demasiadas certezas a respeito do assunto e não gostam de as ver contraditadas. Ora se há coisa que o debate já mostrou, ainda antes da campanha propriamente dita, é de que nesta matéria há argumentos dos dois lados a merecer crédito, atenção e respeito. E, mais importante, o debate tem de facto produzido aquilo a que podemos chamar progresso em algumas posições. Não propriamente no sentido de um acordo, nem isso faria sentido, mas no caminho de alguma sensibilidade e humanidade a respeito do que está verdadeiramente em causa.
Como exemplo, e olhando para os debates sobre o aborto já havidos no passado, temos hoje de reconhecer o quase desaparecimento das posições mais extremas. Dois casos evidentes: actualmente já todos se proclamam adversários do aborto e ninguém hoje defende a penalização. É uma evolução evidente, que denota o aumento da sensibilidade com que todos agora falam sobre esta matéria. Em vista desse progresso é ainda mais de lamentar que o tribunal constitucional, e a actual maioria, não tenham melhorado também eles a qualidade da pergunta a submeter ao eleitorado. O projecto e o debate vão muito para além da despenalização, sobre a qual poderia até haver um consenso sem mudança da lei e sem referendo, e a pergunta lamentavelmente esconde a essência da mudança que se propõe.
Quer essa recusa de extremismos dizer que desapareceu de todo a violência implícita do debate? É evidente que não. Descartando a arrogância do tom do Bloco de Esquerda, que não é específica deste debate porque é habitual em tudo, a irredutibilidade de posições radica na constatação, hoje mais generalizada do que nunca, da existência de vida humana antes do nascimento. Ainda haverá um ou outro que a negue, mas apenas com o resultado de chocar as pessoas. Ora parecerá sempre difícil o facto de a vida intra-uterina não se tornar central em qualquer discussão sobre a possibilidade legal de a "interromper" (curioso eufemismo este, que um dia há-de "interromper-se", acredito). É por isso que a discordância civilizada nessas discussões, parecendo à partida tão difícil de obter, é um adquirido admirável do debate que actualmente mobiliza a atenção de quase todos.
2. Disse recentemente o primeiro-ministro que há uma razão que o leva a votar "sim": "Porque com a lei actual não é possível combater o aborto clandestino." Só que isso levanta uma série de interrogações. Não é o chefe do Governo o primeiro responsável pelo sistema de saúde? E não é ele que se reúne com o procurador-geral que escolheu para lhe confiar orientações? Ou seja, sendo ele quem mais pode actuar sobre os que podem responder a situações de desespero e sobre quem promove processos às mulheres, não é ele também responsável pela actual aplicação de uma lei que é no essencial idêntica à espanhola? Porque esse é um facto difícil de contornar. O Governo espanhol (e o francês, e o italiano, e outros ainda) acha que para combater o aborto clandestino não precisa de pedir aos seus eleitores a transformação da "interrupção" da gravidez num qualquer prazo num acto lícito sem condições. Entre nós não se vê à partida porque é que o Governo não impôs uma interpretação da lei menos conservadora do que a praticada até agora pelo Ministério Público e nos hospitais. Ou, não se achando autorizado para tal, porque é que não aproveitou as iniciativas legislativas nesse sentido que foram entretanto surgindo. Porque há médicos que recusam praticar o aborto apenas pela saúde psíquica da mulher? Mas, os que assim procedem, por maioria de razão, se recusarão quando a razão for nenhuma.
Talvez a intenção seja a de prolongar o mito de que Portugal tem a legislação do aborto mais atrasada da Europa. É um anátema que o Bloco de Esquerda lançou e a que o eng. Sócrates se vergou. Porquê? Para falar disso teríamos de voltar às razões políticas do referendo, e isso agora já não é actual. O que importa é que acabou por se lançar numa liberalização que foi necessário disfarçar sob a palavra da despenalização. Uma liberalização que dispensa quaisquer condições, e até a possibilidade de ajuda material à maternidade, e centra tudo numa liberdade de opção que de facto, até às dez semanas, elimina totalmente o cumprimento do dever constitucional de proteger a vida humana. E é assim que o debate, se levado até às últimas consequências, poderia no fim reduzir-se ao conflito de dois valores apenas: o da liberdade da mulher e o da defesa da vida intra-uterina. Demasiado simples? Talvez, mas a solução extrema para que se aponta não deixa espaço para muito mais.
3. A maior parte dos argumentos esgrimidos pelos defensores do "sim", e que não se fundamentam na simples liberdade de opção da mulher, resistem mal a um exame rigoroso e exigente. O da humilhação de ameaçar as mulheres com a cadeia, por exemplo, que foi usado quase em exclusivo durante demasiado tempo. Demasiado, porque é batalhar em terreno conquistado: há muito que há acordo quanto à despenalização. Transformou-se então em acusação de hipocrisia, mas essa inverte-se porque não se propõe a despenalização após as dez semanas. Ainda assim é preciso acabar com o ilícito, insistiu-se. Mas para tal há que remover toda a protecção legal à vida humana nessas semanas e esse passo não o chegaram a dar os países que se invocam como exemplo. Na verdade ultrapassou-se uma barreira civilizacional sem qualquer necessidade prática que o justifique, e a isso chama-se fundamentalismo.
Restam dois argumentos em igual dificuldade. A necessidade de combater o aborto clandestino como razão mais forte. Suficientemente forte para justificar uma aplicação diferente da lei actual e que deveria conduzir a um esforço de consenso sem recorrer à liberalização. Só que o Governo nem o tentou. E finalmente o das razões económicas e sociais para abortar, a propósito do qual seria bom que uma certa esquerda fizesse um exame à sua coerência. Então a resposta a um problema social é a facilitação de um acto contra o qual todos afirmam estar? Serão as políticas activas de apoio à maternidade algo que lhe repugna? Ou estaremos perante uma visão economicista a requerer a "racionalização" dos meios financeiros, excluindo-os do apoio às grávidas em dificuldade e encaminhando-os para a assistência ao aborto?
Se a unanimidade dos que se declaram contra o aborto é para levar a sério, então há uma conclusão que me parece inevitável. Para os adeptos de uma interpretação finalista e progressista da História (e na esquerda subsistem alguns, porque nem todos se reconvertem em revanchistas da evolução contemporânea...), o mundo perfeito que há-de vir será um mundo sem abortos. Eu chego lá por outro caminho, porque acredito que o verdadeiro progresso é o do aperfeiçoamento moral e o da maturidade civilizacional. A guinada no pós-guerra para a facilitação do aborto deixou há muito de ser indiscutível. O verdadeiro debate veio depois e vai durar muito tempo. A ciência, a mesma que alertou para a vida intra-uterina, torna possíveis a toda a hora outros caminhos. A modernidade reside hoje nas novas políticas de maternidade. Facilitar o aborto, agora, é desistir do futuro.