Um diálogo
Certa vez, ao passar pelo Campo Pequeno na companhia de um colega de trabalho dinamarquês, caí na esparrela de comentar que era ali onde se realizavam as corridas de toiros. O escandinavo, com indignação mal-disfarçada, segurou-me pelo braço e lançou-se a toda uma exposição moralista e condenatória das monstruosidades com os animais. Confesso que o que mais irritou-me foi a atitude condescendente, bem ao gosto de certo tipo de nórdico que se julga muito superior e, portanto, no dever caridoso de corrigir os maus comportamentos dos povos subdesenvolvidos. Retorqui, então, com uma breve descrição da corrida à portuguesa, exemplo lusitano de brandos costumes... O indivíduo acalmou os ânimos, reconheceu-nos até certa ternura, mas não se deu por vencido, insistindo que that is not the point. O point para este natural de Copenhaga era que a essência do “espectáculo” consistia mesmo em maltratar o bicho, física e psicologicamente – e tudo sem perguntar ao toiro se ele estaria de acordo com a brincadeira. “O animal – disse-me – merece o mesmo respeito reservado às pessoas”. Resolvi inquirir o tão civilizado colega sobre a sua posição acerca do aborto. Sem pestanejar declarou-se completamente favorável. Perguntei-lhe se estava ciente de que o aborto implicava um requinte de crueldade física bastante mais elevado do que uma corrida de toiros, e exercida, para mais, sobre um pequenino e indefeso ser, incapaz de enterrar um par de chifres na pança de algum incauto. Lembro de ter mencionado a barbaridade do aborto de nascimento parcial – tão ao gosto do presidente Clinton e senhora. Perguntei se, além de maltrato físico, o aborto não seria também maltrato psicológico. Perguntei se o feto não mereceria o mesmo respeito reservado às pessoas, aquele que ele gostaria de ver extendido aos animais. E perguntei também se achava bem o feto não ser consultado sobre o maltrato que iria receber... As respostas? Todas as minhas indagações foram respondidas com duas curtas frases: 1) o feto não é uma pessoa; 2) abortar é um direito da mulher. Apesar de ser naturalmente averso à polémicas e discussões do tipo diz-tu-direi-eu, não me pude conter e retruquei: Mas então, se o feto não é uma pessoa, o que é? Um animal? Bem, se for um animal – segundo o próprio colega – merece todo o respeito reservado à pessoa, logo não deve sofrer maltratos, menos ainda literalmente despedaçado vivo. Resposta do interlocutor de mentalidade muito avançada: Não, o feto não é nem uma pessoa nem um animal. O feto é um orgão como outro qualquer – uma vesícula, um rim, um fígado. Portanto, pode ser extraído de acordo com a vontade do “dono”. Ora – digo eu – se o feto é um orgão como outro qualquer, como é que ele é constituído à nossa imagem e semelhança, possui um coração que começa a bater aos 20 dias de concepção, um cérebro cuja actividade eléctrica pode ser sentida aos 40 dias, sente dor às 14 semanas e pode sobreviver fora do útero a partir da 21ª semana? Como é que um belo dia ele “salta” para fora da barriga da progenitora ao gritos e aos prantos, para a alegria geral? Se neste momento é considerado “pessoa”, por que o não era alguns segundos antes? Aí o rapaz começou a confundir-se: Bom, não há certeza, não se sabe bem quando passa a ser uma pessoa... Ah! – lá vou eu de novo – Então na dúvida, optamos por ceifar uma “possibilidade” de pessoa? Por que não o contrário, e conceder-lhe o famigerado “benefício da dúvida”? E quem decide quando o feto se transforma em pessoa? Quem traça a linha de demarcação? A mulher? Um grupo de deputados? O técnico abortista? Um concurso na televisão? Sem encontrar argumentos alicerçados na realidade biológica, física, médica, científica em suma, o descendente dos Vikings agarra-se a uma abstracção: a inevitável liberdade da mulher, a liberdade de “escolher”, a liberdade de dispor do “seu” corpo como bem lhe aprouver. Temos de pensar na vontade da mulher, nas suas circunstâncias, etc. – disse-me ele. Respondi que todos temos direitos, alguns até absolutos, e um deles é justamente o direito à vida. E não há nada nem ninguém que possa violar esse direito, nem mesmo a mulher que deseja “dispor” do seu corpo – ou melhor: do que está dentro do seu ventre. “Vontades” e “circunstâncias” devem ser reflectidas com antecipação. Nada pode justificar a bárbara destruição de uma vida humana diminuta e inocente... De repente silêncio... Reparei que a nossa conversa chegava ao fim. Ele insistindo na tecla da liberdade de opção da mulher, eu no carácter sagrado e inviolável da vida humana. Ele, de pensamento muito moderno e sofisticado, a relativizar o valor da vida humana, enquanto absolutiza o valor da vida dos animais irracionais; eu, retrógrado e simplório, continuando a apostar no valor absoluto da vida humana e na relativização da vida dos animais irracionais. Despedimo-nos e não mais falámos no assunto. Não sei se a minha argumentação surtiu algum efeito. Pelo menos serviu para fazer o partidário do aborto deixar de considerar o feto como um órgão qualquer e passar a considerá-lo como, no mínimo, uma "possibilidade" de vida. Não é muito, mas já é alguma coisa. Quanto a mim, não tenho dúvidas de que um ser humano começa a existir no momento da concepção. Independente do seu tamanho ou da duração da sua existência temos aí a pura essência humana. Matar um nascituro é atentar contra o núcleo da nossa “humanidade”, é destruir o que há de mais sagrado na criação: a maravilhosa ligação entre mãe e filho. É roubar à uma vida virgem a possibilidade de um futuro. É uma abominação. É o autêntico crime de lesa-humanidade. Que no dia 11 de Fevereiro a Providência guie os portugueses para que, na terra visitada por Nossa Mãe Santíssima, a vida deste formidável "presente" de Deus permaneça sagrada.
2 Comentários:
ah ah adorei a última meia duzia de frases!
Excelente texto, caro amigo! Absolutamente demolidor!
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