Aborto e civilização
(por José Manuel Moreira)
O aborto voluntário vai tornar-se uma das grandes questões nas sociedades ocidentais. O regresso do tema à tolerante Holanda é só mais um sintoma. O interesse com que entre nós se vive o sim ou não no referendo é disso bom sinal. Há diversas formas de entrar no debate: desde a inconveniência ou ilicitude do aborto à fé religiosa, para cristãos com força de convicção de uma moral universal. Há outra posição que pretende ter validade universal: a científica, embora também aqui as provas não sejam acessíveis à imensa maioria dos homens e mulheres, que as admite por fé (na ciência).
A minha preferida – na linha de artigo (1983) do filósofo Julián Marias – é outra, acessível a todos e independente de conhecimentos científicos ou teológicos que poucos possuem. É a visão antropológica, fundada na mera realidade do homem tal como se vê, vive e se compreende a si mesmo.
Trata-se da distinção decisiva entre “coisa” e “pessoa”, que se revela no uso da língua. Em todas as línguas há uma distinção essencial: entre “que” e “quem”, “algo” e “alguém”, “nada” e “ninguém”. Se entro numa casa onde não há nenhuma pessoa, direi: “não há ninguém”, mas não me ocorrerá dizer: “não há nada”, porque pode estar cheia de móveis, livros, lustres, quadros.
O que tem isto a ver com o aborto? Muito. Quando se diz que o feto é “parte” do corpo da mãe, é falso, porque não é parte: está “alojado” nela, melhor, implantado nela (nela e não meramente no seu corpo). Uma mulher dirá: “estou grávida”, nunca “o meu corpo está grávido”. Uma mulher diz: “vou ter um filho”; não diz: “tenho um tumor”.
A pergunta a referendar, ao usar, em vez de aborto provocado, “interrupção voluntária da gravidez”, não só abusa da hipocrisia como se esconde sob a capa de despenalização. Os advogados do sim não gostam da comparação, mas com isto os partidários da pena de morte vêem as dificuldades resolvidas. Podem passar a chamar à tal pena – por forca ou garrote – “interrupção da respiração” (e também são só uns minutos).
Há ainda as 10 semanas, como se para a criança fizesse diferença em que lugar do caminho se encontra ou a que distância, em semanas ou meses, da sua etapa da vida que se chama nascimento será surpreendida pela morte.
O mais estranho é que para os progressistas o aborto é visto como sinal de progresso, enquanto a pena de morte é de atraso. Dantes denunciavam a “mulher objecto”, agora querem legitimar a criança-objecto, a criança-tumor, que se pode extirpar, em nome do “direito de dispor do próprio corpo”.
O direito (com bons propósitos) serve para nos impedir de entender “o que é aborto”. Por isso se mascara a sua realidade com fins convenientes ou pelo menos aceitáveis: o controle populacional, o bem-estar dos pais, a situação da mãe solteira, as dificuldades económicas, a conveniência de dispor de tempo livre, a melhoria da raça.
A tudo isto acrescem as tentativas de abolir as relações de maternidade e paternidade, reduzindo-as a mera função biológica sem duração para além do acto de geração, sem nenhuma significação pessoal entre o “eu”, o “tu” e o “ele(a)” implicados.
Felizmente, ao pôr-se a nu a grave dimensão da aceitação social do aborto, facilita-se o regresso de temas que os “progressistas” julgavam de direita e, por isso, ultrapassados: a família e a natalidade.
Não devemos estranhar que os mesmos que sempre se equivocaram sobre tudo, desde a natureza do regime soviético a Cuba, passando pelo fim do trabalho e as nacionalizações, se encontrem agora, de novo, unidos no “sim” ao aborto (e no “não” ao sofrimento dos animais). E, ontem como hoje, acompanhados de idiotas úteis. Alguns, pelos vistos, “liberais”, que desconhecem que a noção de liberdade para o liberalismo clássico é oposta à de “direito a ou de”. Para T. Jefferson os seres humanos são independentes, mas não da moral; se a desafiamos, não somos livres mas escravos, primeiro das nossas paixões e depois possivelmente da tirania política. Que tipo de governo democrático poderá controlar homens que não podem controlar as suas próprias paixões? Situação que piorará com a ilusão do Estado contraceptivo e a liberalização das oportunidades para a irresponsabilidade.
O aborto voluntário vai tornar-se uma das grandes questões nas sociedades ocidentais. O regresso do tema à tolerante Holanda é só mais um sintoma. O interesse com que entre nós se vive o sim ou não no referendo é disso bom sinal. Há diversas formas de entrar no debate: desde a inconveniência ou ilicitude do aborto à fé religiosa, para cristãos com força de convicção de uma moral universal. Há outra posição que pretende ter validade universal: a científica, embora também aqui as provas não sejam acessíveis à imensa maioria dos homens e mulheres, que as admite por fé (na ciência).
A minha preferida – na linha de artigo (1983) do filósofo Julián Marias – é outra, acessível a todos e independente de conhecimentos científicos ou teológicos que poucos possuem. É a visão antropológica, fundada na mera realidade do homem tal como se vê, vive e se compreende a si mesmo.
Trata-se da distinção decisiva entre “coisa” e “pessoa”, que se revela no uso da língua. Em todas as línguas há uma distinção essencial: entre “que” e “quem”, “algo” e “alguém”, “nada” e “ninguém”. Se entro numa casa onde não há nenhuma pessoa, direi: “não há ninguém”, mas não me ocorrerá dizer: “não há nada”, porque pode estar cheia de móveis, livros, lustres, quadros.
O que tem isto a ver com o aborto? Muito. Quando se diz que o feto é “parte” do corpo da mãe, é falso, porque não é parte: está “alojado” nela, melhor, implantado nela (nela e não meramente no seu corpo). Uma mulher dirá: “estou grávida”, nunca “o meu corpo está grávido”. Uma mulher diz: “vou ter um filho”; não diz: “tenho um tumor”.
A pergunta a referendar, ao usar, em vez de aborto provocado, “interrupção voluntária da gravidez”, não só abusa da hipocrisia como se esconde sob a capa de despenalização. Os advogados do sim não gostam da comparação, mas com isto os partidários da pena de morte vêem as dificuldades resolvidas. Podem passar a chamar à tal pena – por forca ou garrote – “interrupção da respiração” (e também são só uns minutos).
Há ainda as 10 semanas, como se para a criança fizesse diferença em que lugar do caminho se encontra ou a que distância, em semanas ou meses, da sua etapa da vida que se chama nascimento será surpreendida pela morte.
O mais estranho é que para os progressistas o aborto é visto como sinal de progresso, enquanto a pena de morte é de atraso. Dantes denunciavam a “mulher objecto”, agora querem legitimar a criança-objecto, a criança-tumor, que se pode extirpar, em nome do “direito de dispor do próprio corpo”.
O direito (com bons propósitos) serve para nos impedir de entender “o que é aborto”. Por isso se mascara a sua realidade com fins convenientes ou pelo menos aceitáveis: o controle populacional, o bem-estar dos pais, a situação da mãe solteira, as dificuldades económicas, a conveniência de dispor de tempo livre, a melhoria da raça.
A tudo isto acrescem as tentativas de abolir as relações de maternidade e paternidade, reduzindo-as a mera função biológica sem duração para além do acto de geração, sem nenhuma significação pessoal entre o “eu”, o “tu” e o “ele(a)” implicados.
Felizmente, ao pôr-se a nu a grave dimensão da aceitação social do aborto, facilita-se o regresso de temas que os “progressistas” julgavam de direita e, por isso, ultrapassados: a família e a natalidade.
Não devemos estranhar que os mesmos que sempre se equivocaram sobre tudo, desde a natureza do regime soviético a Cuba, passando pelo fim do trabalho e as nacionalizações, se encontrem agora, de novo, unidos no “sim” ao aborto (e no “não” ao sofrimento dos animais). E, ontem como hoje, acompanhados de idiotas úteis. Alguns, pelos vistos, “liberais”, que desconhecem que a noção de liberdade para o liberalismo clássico é oposta à de “direito a ou de”. Para T. Jefferson os seres humanos são independentes, mas não da moral; se a desafiamos, não somos livres mas escravos, primeiro das nossas paixões e depois possivelmente da tirania política. Que tipo de governo democrático poderá controlar homens que não podem controlar as suas próprias paixões? Situação que piorará com a ilusão do Estado contraceptivo e a liberalização das oportunidades para a irresponsabilidade.
1 Comentários:
A Noite de Cristal
Nunca um boneco de plástico serviu tantos colos: por outras palavras, cansei-me. Acabou o tempo de jogo limpo e vamos ao resto das armas. Como diz o Poeta do Sorrobeco, é chegada a hora de dizer "Não".
Os meus piores pensamentos vêm-me pela noite, quando todos regressam a casa, e o fundo de cada rua, como dizia o meu ilustre antepassado, se "assemelha a uma veneza de tédios".
Hoje, pensei que estava na Europa, onde os referendos são convocados, quando se verificou uma tal clivagem na sociedade, e os jogos de bastidores partidários tão inoperantes que é necessário chamar a Democracia Directa, ou seja, o cidadão, em desespero de causa do equilíbrio de forças, sobrepõe-se aos seus representantes eleitos, e é obrigado a tomar uma posição individual, sobre um tema pantanoso e indeciso.
Em Portugal, onde as coisas funcionam todas ao contrário, o ser vil e cobarde que nos governa resolveu lançar a público um referendo que, pelo contrário, veio clivar, fracturar e tornar ainda mais não-dialogante toda a traumatizada sociedade portuguesa. Já há muito que não lhe desculpo uma, tenho sido coerente na minha linhagem discursiva sobre a criatura, todos sabem que lutei contra o Cavaco, por já saber que ele ia ser um dócil "pequinnois" deste abjecto estado de coisas, todos sabem que tudo farei para que Sócrates caia, como o Muro de Berlim, como o Thomaz, naquele dia de festa, como a estátua de Saddam, em Bagdad, como em tantos outros momentos da euforia dos povos contra a vileza dos seus governantes. Hoje, defronte de muitos fundos de ruas de venezas de tédios, escrevi-lhe uma carta mental, uma coisa simples, que lhe dizia que necessitávamos, neste momento, em Portugal, de uma bateria de referendos, o referendo sobre a idade da reforma, o referendo sobre o Portugal das regiões, o refrendo sobre termos acesso a 20 anos de canais de desvio de fundos comunitários, o referendo de sabermos os nomes de quem nos lançou para a Cauda da Europa, o referendo sobre o salários dos presidentes dos conselhos de adminstração das empresas públicas, o referendo sobre a incompatibilidade de transição entre cargos políticos e conselhos de administração privados, e vice-versa, o referendo sobre a Ota, o referendo sobre a impunidade judicial de certas figuras, o referendo (retroactivo) sobre a aplicabilidade de fundos em coisas como estádios de euros-2004, o referendo sobre ter sido Carlos Cruz a decidir dissipar dinheiros públicos para trazer para Portugal monstros, ele próprio, monstro, incluído, o referendo sobre os poderes do cidadão para impedir a prescrição de certos processos, o referendo sobre o Segredo de Justiça, o referendo sobre o dia a dia que ele, constantemente, nos corrói.
Do lado de lá, só o silêncio, e cada rua era uma veneza de tédios, a dizer-me, mas ele vai-te dar um primeiro referendo, e que vem já aí, no dia 11 de Fevereiro, e eu, dialogando com cada fundo de rua uma veneza de tédios, disse, pois eu quero os outros primeiro, e, quando me devolverem o meu dever democrático de pronunciamento directo, também falarei sobre o Aborto, mas só depois.
Não vai haver nenhum referendo sobre nada, e a minha posição final -- com exclusão de alguma imprevisível hecatombe -- passou a ser a seguinte: posto que um governo dotado de Ignomínia Absoluta, em nada, nem em nenhum dos seus actos, consultou os cidadãos portugueses sobre dezenas de matérias sensibilíssimas para o seu bem-estar, o seu viver presente, e o seu futuro, e agora decide usar, sem apelo nem agravo, o ventre feminino como campo de batalha, compete-me, como cidadão europeu, e, por azar, português, pronunciar-me contra a realização de um tal referendo, o que farei, por todos os meus cívicos postos ao meu dispor. É chegada a hora de dizer "Não", de dizer "Não", a todos os discursos do fantoche; é chegada a hora de dizer "Não" a cada uma das suas aparições públicas, de apagar a televisão, de cada vez que surge, é chegada a hora de congregar do mesmo lado desta trincheira, todas as forças políticas, todos os movimentos, todas as iniciativas populares que se oponham à sobrevivência política da criatura. No dia 11 de Fevereiro, em abstracto, vamos ter uma intervenção cívica, de democracia directa, onde, independentemente do tema -- e é lastimável, ó, como eu lastimo que o tema seja aquele, e que a canalhice e a falta de vergonha do verme o tenham escolhido!... -- é tempo de dizermos ao Boneco de Plasticina, "Não!...", Sr. Sócrates, "Não!...", Sr. "Eng.", "não", à sua cobardia política, "Não", à sua impiedade, "Não", a este permanente coarctar dos nossos direitos cívicos e humanos; "Não", a qualquer iniciativa política que saia do seu antro, "Não" puro e simples, ao seu Referendo do Aborto. Quero que esse "Não" seja sentido, por si, como uma expressão de nojo de uma população inteira sobre tudo o que você representa e defende.
Votar "NÃO" é também votar contra esta Abjecção que nos governa.
E agora comam-me vivo: estou às vossas ordens.
Muito boa noite.
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