Debate ético e leis do aborto
(por Francisco Sarsfield Cabral)
É positivo o actual debate público sobre o aborto. Decerto que, tendo-se realizado outro referendo, com a mesma pergunta, há menos de nove anos, a discussão é um tanto repetitiva - parece já ter sido tudo dito, a favor e contra.
E a abstenção no referendo de 1998 e a prevista para 11 de Fevereiro indiciam, é verdade, que boa parte da população se quer alhear do assunto, algo incomodativo. Também é óbvio que não se trata de um debate académico, sereno e racional.
Ainda assim, é bom que se discuta o aborto, bem como outros problemas que envolvem decisões de consciência e de que as pessoas não gostam geralmente de falar. O facto de estes casos implicarem uma decisão ética pessoal, até íntima, não é contraditório com a conveniência do seu debate público. Por três motivos.
Primeiro, porque a ética é importante. E sem debate aberto das questões acaba por se considerar "normal" e justo aquilo que a maioria das pessoas faz, independentemente de quaisquer justificações morais. Na prática tudo passa, então, a ser aceitável, desde que haja muitos a fazê-lo.
Ora, se a ética é afastada numa sociedade amoral, porque não, então, legalizar a poligamia (e também a poliandria, para ser politicamente correcto), onde ela ocorra com alguma frequência? Na Holanda foi recentemente tentada a criação de um partido pedófilo...
Depois, considero positivo este debate porque, se nem sempre da discussão nasce a luz, a argumentação e o confronto de ideias favorecem a tomada de decisões racionais.
Em terceiro lugar, o debate ético é indispensável para a formação democrática de consensos, nunca unânimes mas pelo menos maioritários, onde assente a legitimidade das leis - sobretudo das leis penais, como a que está em causa no aborto. Em democracia ninguém pode impor aos outros as suas convicções, mas todos têm o direito - e até o dever - de procurarem convencer os outros quanto ao que lhes parece ser a legislação correcta.
A nossa sociedade individualista não está muito virada para debates éticos no espaço público. A tendência dominante é ignorar dilemas morais, fazendo prevalecer os interesses sobre os valores. Ou decidir intuitivamente tais dilemas, por mera inclinação pessoal.
Na questão do aborto também se ouve dizer que é um mero problema privado, que não deve vir para a praça pública. E que a liberalização não obriga ninguém a abortar - logo, respeita em absoluto a liberdade da mulher. Cada uma fará como entender. Acontece que há outra vida em jogo, a do feto. Quem a defende?
Na democracia pluralista existe a permanente tentação de retirar do espaço público as questões susceptíveis de criarem, ou agravarem, divisões na sociedade.
Se temos de pacificamente coexistir com gente de muitas e variadas concepções da vida, então - diz-se - o melhor é não tocar nesses pontos delicados.
O debate em torno do aborto veio dar um abanão nesta inércia e ainda bem. Houve, mesmo, algum progresso em relação à discussão de 1998. Tivemos mais serenidade e menos gritaria, embora dos dois lados ainda se haja registado escusadas manifestações de intolerância (lamento sobretudo as ocorridas no campo do "não", por ser o meu).
Creio que o próprio debate tornou mais claro "que de ambos os lados há pessoas respeitáveis, sérias e bem intencionadas, sinceramente convencidas das suas razões" (J. César das Neves, Aborto - Uma Abordagem Serena, Ed. Principia, pág. 6). É nesse espírito de respeito pelas opiniões divergentes da minha que adianto duas ou três observações, não particularmente originais.
Considero desonesta a pergunta do referendo. Sob a capa de despenalizar a mulher que aborta até às dez semanas, abre-se a porta, no caso de o "sim" ganhar, ao aborto sem qualquer condicionante. E pago pelo Estado.
Por outro lado, quando tão frequentemente entre nós se invoca a Constituição, é curioso que se haja passado por cima do seu art.º 24.º n.º 1, que diz: "A vida humana é inviolável." Se o feto com menos de dez semanas não é vida humana, o que será então?
É verdade que a vida intra-uterina nunca foi muito valorizada na nossa sociedade e, portanto, no nosso direito. Mas as ecografias que hoje se multiplicam, bem como outros meios de conhecimento do que se passa no ventre materno, tornam cada vez mais difícil considerar o feto mera parte do corpo da mãe e não um ser com vida própria. Por isso, seja qual for o resultado deste referendo, a longo prazo o tempo joga a favor do "não".
É positivo o actual debate público sobre o aborto. Decerto que, tendo-se realizado outro referendo, com a mesma pergunta, há menos de nove anos, a discussão é um tanto repetitiva - parece já ter sido tudo dito, a favor e contra.
E a abstenção no referendo de 1998 e a prevista para 11 de Fevereiro indiciam, é verdade, que boa parte da população se quer alhear do assunto, algo incomodativo. Também é óbvio que não se trata de um debate académico, sereno e racional.
Ainda assim, é bom que se discuta o aborto, bem como outros problemas que envolvem decisões de consciência e de que as pessoas não gostam geralmente de falar. O facto de estes casos implicarem uma decisão ética pessoal, até íntima, não é contraditório com a conveniência do seu debate público. Por três motivos.
Primeiro, porque a ética é importante. E sem debate aberto das questões acaba por se considerar "normal" e justo aquilo que a maioria das pessoas faz, independentemente de quaisquer justificações morais. Na prática tudo passa, então, a ser aceitável, desde que haja muitos a fazê-lo.
Ora, se a ética é afastada numa sociedade amoral, porque não, então, legalizar a poligamia (e também a poliandria, para ser politicamente correcto), onde ela ocorra com alguma frequência? Na Holanda foi recentemente tentada a criação de um partido pedófilo...
Depois, considero positivo este debate porque, se nem sempre da discussão nasce a luz, a argumentação e o confronto de ideias favorecem a tomada de decisões racionais.
Em terceiro lugar, o debate ético é indispensável para a formação democrática de consensos, nunca unânimes mas pelo menos maioritários, onde assente a legitimidade das leis - sobretudo das leis penais, como a que está em causa no aborto. Em democracia ninguém pode impor aos outros as suas convicções, mas todos têm o direito - e até o dever - de procurarem convencer os outros quanto ao que lhes parece ser a legislação correcta.
A nossa sociedade individualista não está muito virada para debates éticos no espaço público. A tendência dominante é ignorar dilemas morais, fazendo prevalecer os interesses sobre os valores. Ou decidir intuitivamente tais dilemas, por mera inclinação pessoal.
Na questão do aborto também se ouve dizer que é um mero problema privado, que não deve vir para a praça pública. E que a liberalização não obriga ninguém a abortar - logo, respeita em absoluto a liberdade da mulher. Cada uma fará como entender. Acontece que há outra vida em jogo, a do feto. Quem a defende?
Na democracia pluralista existe a permanente tentação de retirar do espaço público as questões susceptíveis de criarem, ou agravarem, divisões na sociedade.
Se temos de pacificamente coexistir com gente de muitas e variadas concepções da vida, então - diz-se - o melhor é não tocar nesses pontos delicados.
O debate em torno do aborto veio dar um abanão nesta inércia e ainda bem. Houve, mesmo, algum progresso em relação à discussão de 1998. Tivemos mais serenidade e menos gritaria, embora dos dois lados ainda se haja registado escusadas manifestações de intolerância (lamento sobretudo as ocorridas no campo do "não", por ser o meu).
Creio que o próprio debate tornou mais claro "que de ambos os lados há pessoas respeitáveis, sérias e bem intencionadas, sinceramente convencidas das suas razões" (J. César das Neves, Aborto - Uma Abordagem Serena, Ed. Principia, pág. 6). É nesse espírito de respeito pelas opiniões divergentes da minha que adianto duas ou três observações, não particularmente originais.
Considero desonesta a pergunta do referendo. Sob a capa de despenalizar a mulher que aborta até às dez semanas, abre-se a porta, no caso de o "sim" ganhar, ao aborto sem qualquer condicionante. E pago pelo Estado.
Por outro lado, quando tão frequentemente entre nós se invoca a Constituição, é curioso que se haja passado por cima do seu art.º 24.º n.º 1, que diz: "A vida humana é inviolável." Se o feto com menos de dez semanas não é vida humana, o que será então?
É verdade que a vida intra-uterina nunca foi muito valorizada na nossa sociedade e, portanto, no nosso direito. Mas as ecografias que hoje se multiplicam, bem como outros meios de conhecimento do que se passa no ventre materno, tornam cada vez mais difícil considerar o feto mera parte do corpo da mãe e não um ser com vida própria. Por isso, seja qual for o resultado deste referendo, a longo prazo o tempo joga a favor do "não".
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