DA INFÂMIA DOS FINS À CORRUPÇÃO DOS MEIOS
(por João César das Neves)
Daqui a tempos haverá novo referendo sobre a regionalização. Suponha que, ao contrário do anterior, ele aprova essa política. Suponha que depois, em nome da legitimidade da vitória, as novas autoridades regionais criam uma autonomia que destrói Portugal. Um exagero desses acontece agora com o recente referendo sobre o aborto.
A questão posta à votação no passado dia 11 de Fevereiro tratava apenas da "despenalização da interrupção voluntária da gravidez". Mas a lei que a maioria apresentou e aprovou prevê a "exclusão da ilicitude" (Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril). Os nossos legisladores conhecem bem a diferença, pois há anos decretaram a despenalização do consumo de droga (Lei 30/2000 de 29 de Novembro), sem com isso excluir a ilicitude nem, pior, impor a sua banalização. Desta vez porém deram esse salto lógico sem dificuldades ou contemplações. O Sistema Nacional de Saúde prepara-se para fornecer livremente o aborto em nome da suposta legitimidade democrática do referendo.
Agora junta-se insulto à infâmia. Na proposta de Lei de Política Criminal prevê-se que "toda a criminalidade menos grave vai deixar de estar sujeita a penas de prisão. Nela se inclui 'o aborto com consentimento da mulher grávida fora das situações de não punibilidade legalmente prevista' - lê-se no artigo 10.º da proposta" (DN de 20 de Abril). Assim a argumentação do campo abortista não passou de grotesta impostura. Falavam de pobres mulheres presas e grave repressão policial, mas este diploma em preparação eliminará a questão da prisão para o aborto consentido em toda a gravidez. Para quê então tanto esforço e despesa no referendo? Nem sequer houve o pudor de deixar passar algum tempo para disfarçar a burla.
O embuste vem de longe. A lei do aborto é há muito um festival de aldrabice e distorção, pois começou por ser rejeitada em 1997, para ser aprovada pela mesma Assembleia, menos de um ano depois, após manipulação dos deputados. Agora, com base num voto que só falava de despenalização, as autoridades vão impondo os caprichos que escamotearam durante a campanha. Na altura o primeiro-ministro prometeu "as melhores práticas europeias" e falou no caso alemão. Depois, desavergonhadamente, acabamos com uma solução pior que soviética.
A questão curiosa é saber como é possível tal grau de desonestidade. A explicação simplista, de afirmar que temos uma elite corrupta e mentirosa, nada diz. Primeiro não pode ser levada a sério sem implicar a única solução coerente, a emigração. Depois porque hoje um tal nível de indignidade nunca pode vir apenas da corrupção da elite. O mal é demasiado grande para a explicação directa.
Só existe uma força capaz de tanta desfaçatez: a certeza da convicção. As maiores catástrofes da era moderna foram causadas, não por assassinos maléficos, mas por reformadores inspirados. De Robespierre a Pol Pot, de Hitler a Bush, foi sempre em nome de um mundo novo, de uma sociedade mais justa que se cometeram as piores atrocidades. O mesmo se passa agora com a liberalização do aborto. Os seus defensores estão fanaticamente convencidos, com um fanatismo indispensável para calar a consciência, de que só assim se defende o bem da mulher e sociedade. Julgam os opositores como bárbaros obsoletos que não merecem atenção. Com um fim tão "sublime" justificam-se quaisquer meios. Até a desonestidade aberta e a manipulação perversa da vida democrática. Que representam algumas distorções semânticas perante a liberdade sexual e o acesso a cuidados de saúde, mesmo na chacina de embriões?
O poder não só impõe a prática infame do aborto mas para o conseguir cobre de infâmia a legalidade e a democracia. Os fins corrompem os meios. Este processo é velho por cá, onde os maiores atropelos já foram feitos "a bem da Nação". Mas agora é num tema nuclear, a vida humana inocente. Uma vez passada esta fronteira, nunca mais se volta atrás. A arrogância da elite fica imparável. Temos de nos preparar para os próximos atropelos à legitimidade e honradez. Provavelmente já na regionalização.
Daqui a tempos haverá novo referendo sobre a regionalização. Suponha que, ao contrário do anterior, ele aprova essa política. Suponha que depois, em nome da legitimidade da vitória, as novas autoridades regionais criam uma autonomia que destrói Portugal. Um exagero desses acontece agora com o recente referendo sobre o aborto.
A questão posta à votação no passado dia 11 de Fevereiro tratava apenas da "despenalização da interrupção voluntária da gravidez". Mas a lei que a maioria apresentou e aprovou prevê a "exclusão da ilicitude" (Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril). Os nossos legisladores conhecem bem a diferença, pois há anos decretaram a despenalização do consumo de droga (Lei 30/2000 de 29 de Novembro), sem com isso excluir a ilicitude nem, pior, impor a sua banalização. Desta vez porém deram esse salto lógico sem dificuldades ou contemplações. O Sistema Nacional de Saúde prepara-se para fornecer livremente o aborto em nome da suposta legitimidade democrática do referendo.
Agora junta-se insulto à infâmia. Na proposta de Lei de Política Criminal prevê-se que "toda a criminalidade menos grave vai deixar de estar sujeita a penas de prisão. Nela se inclui 'o aborto com consentimento da mulher grávida fora das situações de não punibilidade legalmente prevista' - lê-se no artigo 10.º da proposta" (DN de 20 de Abril). Assim a argumentação do campo abortista não passou de grotesta impostura. Falavam de pobres mulheres presas e grave repressão policial, mas este diploma em preparação eliminará a questão da prisão para o aborto consentido em toda a gravidez. Para quê então tanto esforço e despesa no referendo? Nem sequer houve o pudor de deixar passar algum tempo para disfarçar a burla.
O embuste vem de longe. A lei do aborto é há muito um festival de aldrabice e distorção, pois começou por ser rejeitada em 1997, para ser aprovada pela mesma Assembleia, menos de um ano depois, após manipulação dos deputados. Agora, com base num voto que só falava de despenalização, as autoridades vão impondo os caprichos que escamotearam durante a campanha. Na altura o primeiro-ministro prometeu "as melhores práticas europeias" e falou no caso alemão. Depois, desavergonhadamente, acabamos com uma solução pior que soviética.
A questão curiosa é saber como é possível tal grau de desonestidade. A explicação simplista, de afirmar que temos uma elite corrupta e mentirosa, nada diz. Primeiro não pode ser levada a sério sem implicar a única solução coerente, a emigração. Depois porque hoje um tal nível de indignidade nunca pode vir apenas da corrupção da elite. O mal é demasiado grande para a explicação directa.
Só existe uma força capaz de tanta desfaçatez: a certeza da convicção. As maiores catástrofes da era moderna foram causadas, não por assassinos maléficos, mas por reformadores inspirados. De Robespierre a Pol Pot, de Hitler a Bush, foi sempre em nome de um mundo novo, de uma sociedade mais justa que se cometeram as piores atrocidades. O mesmo se passa agora com a liberalização do aborto. Os seus defensores estão fanaticamente convencidos, com um fanatismo indispensável para calar a consciência, de que só assim se defende o bem da mulher e sociedade. Julgam os opositores como bárbaros obsoletos que não merecem atenção. Com um fim tão "sublime" justificam-se quaisquer meios. Até a desonestidade aberta e a manipulação perversa da vida democrática. Que representam algumas distorções semânticas perante a liberdade sexual e o acesso a cuidados de saúde, mesmo na chacina de embriões?
O poder não só impõe a prática infame do aborto mas para o conseguir cobre de infâmia a legalidade e a democracia. Os fins corrompem os meios. Este processo é velho por cá, onde os maiores atropelos já foram feitos "a bem da Nação". Mas agora é num tema nuclear, a vida humana inocente. Uma vez passada esta fronteira, nunca mais se volta atrás. A arrogância da elite fica imparável. Temos de nos preparar para os próximos atropelos à legitimidade e honradez. Provavelmente já na regionalização.
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