terça-feira, janeiro 02, 2007

Aborto Um Contributo para o Debate

(Um magnífico artigo de Pedro Vaz Patto, no Boletim da Ordem dos Advogados.)

Conhecemos os argumentos que têm sido apresentados para justificar a alteração do quadro legal vigente relativo ao aborto e o “sim” no referendo que se aproxima. Estaria em causa apenas a despenalização do aborto e a necessidade de pôr termo à prisão e julgamento das mulheres que abortam. Tratar-se-ia de uma proposta moderada, pois tal despenalização diz respeito apenas ao aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez. Estaríamos perante uma exigência da tolerância e do pluralismo doutrinal próprio de sociedades democráticas (ninguém será obrigado a abortar, tal como ninguém é obrigado a recorrer ao divórcio). A experiência dos países que legalizaram o aborto demonstraria que a legalização não contribui Para o aumento dessa prática. A ilegalização do aborto teria Por efeito “empurrar” as mulheres para o aborto clandestino.
Em resposta a estes argumentos, gostaria de dar o meu contributo para o debate.
Parece óbvio que não está em causa apenas a despenalização (ou descriminalização) do aborto, mas antes a sua legalização e liberalização. A proposta em discussão torna o aborto até às dez semanas de gravidez uma conduta lícita sempre que realizada “por opção da mulher” em “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Só porque passará a tratar-se de uma conduta lícita, um direito (e não apenas uma conduta não criminalizada ou não penalizada) é que serão aceitáveis a futura prática de abortos em hospitais públicos ou clínicas convencionadas, tal como as sugestões de alteração do código deontológico dos médicos. É possível descriminalizar ou despenalizar sem legalizar ou liberalizar. Foi o que sucedeu com o consumo de droga, que foi descriminalizado, mas que não passou a ser livre ou a ser facilitado pelo Estado (não passou a ser fornecido por este “por opção” do consumidor” em “estabelecimento legalmente autorizado”). Mas não é isso que se verifica em relação à proposta em apreço.
No actual quadro legal de criminalização do aborto, é possível evitar a prisão das mulheres que abortaram quando grávidas, em estrita consonância com os princípios fundamentais do sistema (que encaram a prisão como último recurso), com a opção por penas não privativas da liberdade (o que se tem verificado desde há muito). E, também em consonância com esse espírito, que privilegia soluções consensuais e não estigmatizantes (não se trata de uma “engenharia processual”, como já afirmou o primeiro-ministro), é possível o recurso à suspensão provisória do processo (que não se confunde com a desaplicação da Lei ou o puro e simples arquivamento do processo) para evitar os julgamentos das mulheres que abortaram quando grávidas. A iniciativa legislativa de cidadãos "Proteger a Vida sem Julgar a Mulher" (www.protegersemjulgar.com), de que sou um dos promotores, propugna esse recurso de uma forma sistemática, sem incoerência (ou “hipocrisia”, como também já afirmou o primeiro-ministro), pois pretende conciliar a condenação do aborto na sua objectividade com uma atitude compreensiva e solidária com a mulher que normalmente aborta pressionada por dramáticas situações vivenciais.
Não tem sentido afirmar que a proposta a submeter a referendo é moderada porque diz respeito apenas ao aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez. A vida humana é um processo contínuo que se inicia na concepção e é tão arbitrário traçar uma fronteira às dez semanas de gravidez como em qualquer outra fase desse processo, antes ou depois do nascimento. A vida humana tem uma dignidade intrínseca e absoluta, não a vai adquirindo progressivamente. É óbvio que qualquer um de nós só está vivo porque passou essa “fatídica” barreira das dez semanas e não o estaria se não a tivesse passado. A quem sofre um atentado à vida de pouco serve garantir que esse atentado não se produziria se atingisse uma fase posterior da sua vida, que acabará por nunca atingir, precisamente porque sofre esse atentado.
Só poderíamos afirmar que a legalização do aborto é uma exigência da tolerância e do pluralismo doutrinal próprio das sociedades democráticas se não estivesse em causa um direito de outrem. Não pode depender da consciência (bem ou mal formada) de cada um a violação de um direito de outrem. E, neste caso, está em causa o primeiro dos direitos, que é pressuposto de todos os outros, o direito à vida. Está em causa o direito à vida de um ser que, por ser mais fraco, invisível (hoje não tanto como outrora), desprovido de poder reivindicativo ou até da capacidade de nos comover, não é, por isso, menos digno de protecção. Quanto à tutela da vida, o Estado não pode ser neutro. Ao aceitar o aborto livre, não está a assumir uma posição de neutralidade, está a assumir que a vida pré-natal não tem a dignidade própria da vida humana. Com a liberalização do aborto, ninguém é obrigado a abortar, mas o nascituro, obviamente, é obrigado a sofrer o aborto. E todos os cidadãos acabam por nele colaborar indirectamente quando para a sua prática são destinados recursos públicos.
Afirmar que a legalização do aborto não contribui para o incremento da sua prática (ou conduz mesmo à diminuição desta) não se coaduna com as regras mais elementares do raciocínio lógico. Toda a política legislativa (de combate à poluição, à insegurança rodoviária, à droga ou ao fumo, por exemplo) assenta no pressuposto contrário. Não se combate um fenómeno liberalizando-o, ou facilitando-o. Quando o Estado facilita o aborto colaborando activamente na sua prática está, logicamente, a incrementá-lo. E a experiência demonstra-o.
A ideia de que o número de abortos diminui com a legalização surge porque se comparam as estatísticas oficiais posteriores à legalização com números de abortos clandestinos anteriores à mesma sem qualquer fiabilidade, avançados no âmbito da propaganda tendente a essa legalização. Entre nós, os números que agora se indicam a este respeito (na ordem dos vinte mil, quando na campanha anterior chegou a falar-se em duzentos mil) resultam da extrapolação de dados de outros países onde o aborto é legal (o que pressupõe a conclusão que está precisamente em discussão e por demonstrar: que a legalização do aborto não aumenta com a sua prática).
Já têm outra segurança dados que indicam que, depois da legalização, uma percentagem elevada (cerca de 70%) de mulheres que abortam declaram que não o teriam feito se o aborto não fosse legal (ver, quanto aos Estados Unidos, David Reardon, Aborted Women: Silent No More, Loyola University Press, Chicago, 1984, sendo que também apontam neste sentido estudos realizados em França e Itália). Penso que este facto demonstra que a lei que criminaliza o aborto não deixa de ter eficácia mesmo quando não são raras as condenações (como se verifica entre nós). Essa eficácia não terá tanto a ver com a prevenção geral negativa (a intimidação resultante da aplicação e da severidade das penas), mas antes com a prevenção geral positiva (a mensagem cultural e o papel pedagógico ínsitos na pura e simples definição de uma conduta como crime).
As estatísticas oficiais depois da legalização (incontestáveis, pois) revelam que, apesar da difusão do planeamento familiar, o número de abortos se mantém muito elevado, a ponto de se poder falar em verdadeira banalização desta prática. A percentagem dos abortos legais em relação aos nascimentos atinge 34,8% na Suécia (país tantas vezes apresentado como modelo de progresso social), 26,5% no Reino Unido, 22,6% na França, 26,8% na Dinamarca e 26,6% em Itália (dados da Eurostat referidos in Famiglia Cristiana nº 28/2002, pg.21).
As estatísticas revelam também que, depois da legalização, em muitos países, o número de abortos vai crescendo, e não diminuindo. No Reino Unido, desde a legalização do aborto o seu número triplicou (Avvenire, 1/7/2005). Na Austrália, entre 1970 (já depois da legalização) e 2002 esse número decuplicou. Em Espanha, o crescimento do número de abortos foi de 75,3% entre 1993 e 2003 e de 48,2% entre 1998 e 2003 (ver o relatório do Instituto de Politica Familiar em www.ipfe.org).
Quando não se verifica esse aumento (como sucede em Itália), isso pode facilmente explicar-se pela maior difusão do planeamento familiar. Mas esta difusão não depende, como é óbvio, da legalização do aborto. O que a legalização do aborto provoca é que o aborto passa a ser um recurso mais frequente em caso de falhas dos métodos de planeamento familiar. A este respeito, a experiência de França é elucidativa. O número de abortos mantém-se elevado (em torno dos duzentos mil por ano) apesar da maior difusão do planeamento familiar, porque o recurso mais frequente ao aborto em caso de falhas dos métodos de planeamento familiar compensa a diminuição de gravidezes indesejadas resultante da difusão do planeamento familiar (ver um estudo do Institut National d´Ètudes Démographiques in Population et Société, nº 407).
Verifica-se, por outro lado, que a situação inversa, de limitação legal da prática do aborto depois da liberalização fez diminuir significativamente a sua prática, mesmo que não a elimine e se mantenha a prática do aborto clandestino. É o que se tem verificado na Polónia (ver La Croix, 22/10/96, e Pablo López, Alba, ano II, nº 54, pg. 53).
Choca-me que se diga que a legalização do aborto é a única forma de evitar que a mulher seja “empurrada” para o aborto clandestino. Isso é aceitar que o Estado e a sociedade só têm para oferecer à mulher com dificuldades em assumir a sua maternidade as alternativas do aborto clandestino e do aborto legal. O aborto nunca é (não pode ser) a única alternativa (nos casos mais extremos, há sempre a alternativa da adopção) e é sempre, seguramente, a pior das alternativas. A legalização do aborto pode facilmente servir de pretexto para a desresponsabilização, da parte da sociedade e do Estado, no combate às suas causas: porque está legalmente garantido o aborto (“livre, seguro e gratuito”), não vale a pena atacar na sua raiz os problemas (de exclusão social, de precariedade laboral, de desestruturação familiar) que a ele podem conduzir.
Não pode falar-se do aborto como se de um benefício se tratasse. O aborto nunca é um bem para ninguém. E não é um bem para a própria mulher, como, cada vez mais, demonstram estudos relativos às suas graves sequelas psicológicas (ver, por exemplo, www.vozvictimas.org e www.silentnomoreawarness.org . Porque um direito só tem sentido quando é relativo a um bem, falar do “direito ao aborto” é tão absurdo como falar do “direito à doença” ou do “direito à morte”.
Há estudos que revelam que 64% das mulheres que abortaram afirmam terem sido pressionadas por outros a abortar e que mais de 80% de entre elas afirmam que não o teriam feito se tivessem tido outro apoio da parte dos familiares e da sociedade (ver www.unfairchoice.info/unwanted.htm ). É, precisamente, para este apoio que o Estado e a sociedade devem canalizar todos os seus recursos. A alternativa ao aborto clandestino não é o aborto legal, é o apoio à maternidade. Em nome da tutela da vida e em nome dos autênticos direitos da mulher.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

é isso estes gajos têem que aprender.

http://www.youtube.com/watch?v=2IEnkHHTynw

1/02/2007 10:33:00 da tarde  

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