Aborto: liberalizar ou despenalizar?
O que está em causa no referendo? Dois caminhos alternativos: manter o aborto como crime, com as excepções já previstas na lei, ou legalizar o aborto “por opção da mulher”.
Paulo Marcelo
O Presidente da República marcou o segundo referendo sobre o aborto em Portugal. Questões ideológicas à parte, queria analisar juridicamente a pergunta da consulta popular. Não são ainda conhecidas as concretas alterações legais pós-referendo, apenas se conhece a pergunta que fala em “despenalização”. Mas o que está em causa neste referendo: despenalizar ou liberalizar o aborto?
Despenalizar ou descriminalizar uma conduta implica mantê-la proibida (ilegal) mas sem pena criminal associada. Foi o que aconteceu com o consumo de drogas, (passou de crime com pena de prisão para contra-ordenação sujeita a coima) ou com os
cheques sem provisão pré-datados ou de reduzido valor.
Ora o que se pretende com este referendo é permitir o aborto “por opção da mulher, nasprimeiras 10 semanas”. Ou seja, tornar livre (liberalizar) a prática de aborto desde que a pedido da mulher, tornando-o legal, uma vez que no direito português, tudo o que não é proibido é permitido (liberdade jurígena). Em rigor jurídico, trata-se pois de uma legalização. Existindo apoio do Estado à realização da IVG no SNS ou em clínicas privadas – a pergunta refere “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” – podemos também falar em liberalização do aborto.
Assim, o termo “despenalização” usado na pergunta não é rigoroso nem neutro: remete para a ideia de que o “sim” no referendo resolveria o problema dos julgamentos, o quenão acontece. Infelizmente os julgamentos continuariam para os abortos clandestinos (fora do “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”) e para os abortos praticados depois das 10 semanas, como vários dos julgamentos dos últimos anos. Aliás, se o objectivo fosse acabar com os julgamentos, teriam sido aprovadas as tentativas de introduzir a “suspensão provisória do Processo”, proposta de duas deputadas independentes do PS, ou a solução de Freitas do Amaral: manter o aborto legalmente como crime, mas despenalizar a mulher, presumindo que actuou em estado de necessidade desculpante (art. 35.º CP).
O que está então em causa neste referendo? Dois caminhos alternativos: manter o aborto como crime, com as excepções já previstas na lei (perigo de vida ou saúde da mulher, malformação ou doença grave do feto, violação, 142º CP), ou legalizar o aborto “por opção da mulher”, tornando-o livre (liberalizado) até às 10 semanas no SNS.
Sobre a questão jurídica, recomenda-se a leitura das declarações de voto dos conselheiros Moura Ramos, Mota Pinto e Araújo Torres (Ac. 617/06 TC): em síntese, legalizar o aborto até às 10 semanas por vontade da mulher (sem necessidade de indicação legal ou aconselhamento prévio) seria inconstitucional, por implicar a total desprotecção da vida intra-uterina nas primeiras 10 semanas, em desrespeito pelo princípio da inviolabilidade da vida humana (24.º CRP).
O TC ainda não se pronunciou – nenhuma lei concreta lhe foi ainda submetida –, mas seria um erro inverter a Jurisprudência do TC (Ac. 25/84 e 85/85), segundo a qual só um sistema de indicações, como o da actual lei, seria compatível com um mínimo de protecção jurídica da vida intra-uterina. Não faz sentido transformar o feto humano num “nada” jurídico, que se pode eliminar sem justificação legal até às 10 semanas. Aliás este limite não tem fundamento científico (revolução ecográfica) e pode representar um convite ao incumprimento.
Não se nega o problema do aborto, mas liberalizar não é a solução. A defesa da vida humana implica um sistema legal coerente, que transmita os sinais correctos à sociedade (função pedagógica da lei) e proteja o bem jurídico da vida (função de prevenção geral da lei penal), que é fundamento de todos os outros direitos. O aborto deve permanecer como crime mesmo que, no caso concreto, não seja aplicada (ou suspensa) a pena, avaliando a situação dramática da mulher, sem culpa subjectiva. Note-se que em Portugal não há nenhuma mulher/mãe presa por crime de aborto.
Mas qual o problema de liberalizar o aborto? O risco é desresponsabilizar o Estado da luta contra as causas do aborto. Se temos campanhas contra o trabalho infantil ou contra o abandono escolar, porque não uma campanha nacional para diminuir o aborto, apoiando seriamente as mulheres durante a gravidez? Não valerá a causa do aborto 1% do défice?
Paulo Marcelo, Advogado e docente da Faculdade de Direito de Lisboa.
Paulo Marcelo
O Presidente da República marcou o segundo referendo sobre o aborto em Portugal. Questões ideológicas à parte, queria analisar juridicamente a pergunta da consulta popular. Não são ainda conhecidas as concretas alterações legais pós-referendo, apenas se conhece a pergunta que fala em “despenalização”. Mas o que está em causa neste referendo: despenalizar ou liberalizar o aborto?
Despenalizar ou descriminalizar uma conduta implica mantê-la proibida (ilegal) mas sem pena criminal associada. Foi o que aconteceu com o consumo de drogas, (passou de crime com pena de prisão para contra-ordenação sujeita a coima) ou com os
cheques sem provisão pré-datados ou de reduzido valor.
Ora o que se pretende com este referendo é permitir o aborto “por opção da mulher, nasprimeiras 10 semanas”. Ou seja, tornar livre (liberalizar) a prática de aborto desde que a pedido da mulher, tornando-o legal, uma vez que no direito português, tudo o que não é proibido é permitido (liberdade jurígena). Em rigor jurídico, trata-se pois de uma legalização. Existindo apoio do Estado à realização da IVG no SNS ou em clínicas privadas – a pergunta refere “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” – podemos também falar em liberalização do aborto.
Assim, o termo “despenalização” usado na pergunta não é rigoroso nem neutro: remete para a ideia de que o “sim” no referendo resolveria o problema dos julgamentos, o quenão acontece. Infelizmente os julgamentos continuariam para os abortos clandestinos (fora do “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”) e para os abortos praticados depois das 10 semanas, como vários dos julgamentos dos últimos anos. Aliás, se o objectivo fosse acabar com os julgamentos, teriam sido aprovadas as tentativas de introduzir a “suspensão provisória do Processo”, proposta de duas deputadas independentes do PS, ou a solução de Freitas do Amaral: manter o aborto legalmente como crime, mas despenalizar a mulher, presumindo que actuou em estado de necessidade desculpante (art. 35.º CP).
O que está então em causa neste referendo? Dois caminhos alternativos: manter o aborto como crime, com as excepções já previstas na lei (perigo de vida ou saúde da mulher, malformação ou doença grave do feto, violação, 142º CP), ou legalizar o aborto “por opção da mulher”, tornando-o livre (liberalizado) até às 10 semanas no SNS.
Sobre a questão jurídica, recomenda-se a leitura das declarações de voto dos conselheiros Moura Ramos, Mota Pinto e Araújo Torres (Ac. 617/06 TC): em síntese, legalizar o aborto até às 10 semanas por vontade da mulher (sem necessidade de indicação legal ou aconselhamento prévio) seria inconstitucional, por implicar a total desprotecção da vida intra-uterina nas primeiras 10 semanas, em desrespeito pelo princípio da inviolabilidade da vida humana (24.º CRP).
O TC ainda não se pronunciou – nenhuma lei concreta lhe foi ainda submetida –, mas seria um erro inverter a Jurisprudência do TC (Ac. 25/84 e 85/85), segundo a qual só um sistema de indicações, como o da actual lei, seria compatível com um mínimo de protecção jurídica da vida intra-uterina. Não faz sentido transformar o feto humano num “nada” jurídico, que se pode eliminar sem justificação legal até às 10 semanas. Aliás este limite não tem fundamento científico (revolução ecográfica) e pode representar um convite ao incumprimento.
Não se nega o problema do aborto, mas liberalizar não é a solução. A defesa da vida humana implica um sistema legal coerente, que transmita os sinais correctos à sociedade (função pedagógica da lei) e proteja o bem jurídico da vida (função de prevenção geral da lei penal), que é fundamento de todos os outros direitos. O aborto deve permanecer como crime mesmo que, no caso concreto, não seja aplicada (ou suspensa) a pena, avaliando a situação dramática da mulher, sem culpa subjectiva. Note-se que em Portugal não há nenhuma mulher/mãe presa por crime de aborto.
Mas qual o problema de liberalizar o aborto? O risco é desresponsabilizar o Estado da luta contra as causas do aborto. Se temos campanhas contra o trabalho infantil ou contra o abandono escolar, porque não uma campanha nacional para diminuir o aborto, apoiando seriamente as mulheres durante a gravidez? Não valerá a causa do aborto 1% do défice?
Paulo Marcelo, Advogado e docente da Faculdade de Direito de Lisboa.
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