Lições do abismo
Bem gostava eu de não falar do que chamei a "ideologia abortista".
Todavia, como já imperfeitamente tentei dizer, a questão parece-me de crucial importância, porque nesse ponto deparamos com um afloramento de uma mentalidade expandida a todos os níveis e que se tornou a dominante nas sociedades contemporâneas - e que não podemos deixar de combater, sob pena de ser ela a moldar-nos o futuro.
E o futuro que tal ideologia traz no bojo, partindo embora da ideia da liberdade como ausência de constrangimentos ou limitações à vontade individual, não poderá deixar de ser um futuro de absoluta tirania, em que o indivíduo acabará por ser a vítima final.
Regresso ao tema por ter encontrado um texto que me pareceu um excelente exemplo da falácia que se encontra sempre subjacente a esse pensamento e mentalidade.
Destaco esta passagem fundamental para a compreensão do que está em jogo:
"Se a IVG fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade abortando, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não abortariam."
Certamente que o leitor desprevenido leu e gostou da equanimidade do autor (desconto agora o eufemismo de chamar IVG ao aborto, como se estivéssemos perante algo que se interrompe agora para continuar mais logo).
Excelente. Magnífico. Cada um faz como entende. É um assunto que releva do foro íntimo de cada um. Ninguém tem nada com isso. Os que quiserem abortam, os que não quiserem não abortam.
Mas examinemos a sentença mais de perto. E para verificarmos se faz sentido, ou o sentido que tem, nada melhor do que fazer um exercício de comparação dentro do Direito Penal.
Por exemplo, substituindo as palavras que designam condutas actualmente penalizadas:
"Se o roubo fosse despenalizado seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade roubando, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não roubariam."
Ou ainda, continuando no mesmo ramo do Direito:
"Se a pedofilia fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade dessa forma, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não o fariam."
O exercício pode continuar indefinidamente em relação a todas as condutas objecto de penalização.
Pode no entanto alargar-se o campo do estudo. Ao terreno do Direito Fiscal, por exemplo:
"Se a fraude fiscal fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade defraudando o fisco, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não o fariam."
Ou mesmo na área do Direito Estradal:
"Se a condução sob influência do álcool fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade conduzindo bêbados, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não conduziriam nesse estado."
Por esta altura já o leitor terá começado a torcer o nariz. E o pior estará para vir, se continuar o raciocínio: não há nenhuma norma de conduta social que não possa utilizar-se neste exercício (substituindo apenas a palavra penalização, de aplicação muito específica, por toda a consequência negativa que a norma preveja para reagir ao seu incumprimento).
Ora se há normas de conduta social, como são as de mera cortesia ou boa educação, que efectivamente a sociedade organizada deixou entregues à vontade livre dos indivíduos, não procurando assegurar o seu cumprimento através de qualquer sistema sancionatório formal que imponha o seu acatamento, já em relação a outras normas, por tratarem de condutas que a sociedade entendeu não poderem ficar na dependência das vontades individuais, foram as mesmas proclamadas como imperativas, impondo-as a essas vontades, instituindo-se formas de garantir a sua não violação, e, ocorrendo esta, o sancionamento dessa conduta desviante.
Ao sistema formado por essas normas de conduta social, assistido de protecção coactiva, chama-se o Direito. Não parece que possa existir Direito sem esse elemento de coercibilidade, ou seja sem essa limitação da liberdade a que a frase em análise faz referência para a rejeitar.
E sem um sistema jurídico, sem Direito, também não creio que possa existir sociedade humana.
Todavia, como já imperfeitamente tentei dizer, a questão parece-me de crucial importância, porque nesse ponto deparamos com um afloramento de uma mentalidade expandida a todos os níveis e que se tornou a dominante nas sociedades contemporâneas - e que não podemos deixar de combater, sob pena de ser ela a moldar-nos o futuro.
E o futuro que tal ideologia traz no bojo, partindo embora da ideia da liberdade como ausência de constrangimentos ou limitações à vontade individual, não poderá deixar de ser um futuro de absoluta tirania, em que o indivíduo acabará por ser a vítima final.
Regresso ao tema por ter encontrado um texto que me pareceu um excelente exemplo da falácia que se encontra sempre subjacente a esse pensamento e mentalidade.
Destaco esta passagem fundamental para a compreensão do que está em jogo:
"Se a IVG fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade abortando, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não abortariam."
Certamente que o leitor desprevenido leu e gostou da equanimidade do autor (desconto agora o eufemismo de chamar IVG ao aborto, como se estivéssemos perante algo que se interrompe agora para continuar mais logo).
Excelente. Magnífico. Cada um faz como entende. É um assunto que releva do foro íntimo de cada um. Ninguém tem nada com isso. Os que quiserem abortam, os que não quiserem não abortam.
Mas examinemos a sentença mais de perto. E para verificarmos se faz sentido, ou o sentido que tem, nada melhor do que fazer um exercício de comparação dentro do Direito Penal.
Por exemplo, substituindo as palavras que designam condutas actualmente penalizadas:
"Se o roubo fosse despenalizado seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade roubando, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não roubariam."
Ou ainda, continuando no mesmo ramo do Direito:
"Se a pedofilia fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade dessa forma, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não o fariam."
O exercício pode continuar indefinidamente em relação a todas as condutas objecto de penalização.
Pode no entanto alargar-se o campo do estudo. Ao terreno do Direito Fiscal, por exemplo:
"Se a fraude fiscal fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade defraudando o fisco, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não o fariam."
Ou mesmo na área do Direito Estradal:
"Se a condução sob influência do álcool fosse despenalizada seríamos então todos igualmente livres. Os que quisessem exercer a sua liberdade conduzindo bêbados, teriam essa possibilidade. Os que não quisessem, não conduziriam nesse estado."
Por esta altura já o leitor terá começado a torcer o nariz. E o pior estará para vir, se continuar o raciocínio: não há nenhuma norma de conduta social que não possa utilizar-se neste exercício (substituindo apenas a palavra penalização, de aplicação muito específica, por toda a consequência negativa que a norma preveja para reagir ao seu incumprimento).
Ora se há normas de conduta social, como são as de mera cortesia ou boa educação, que efectivamente a sociedade organizada deixou entregues à vontade livre dos indivíduos, não procurando assegurar o seu cumprimento através de qualquer sistema sancionatório formal que imponha o seu acatamento, já em relação a outras normas, por tratarem de condutas que a sociedade entendeu não poderem ficar na dependência das vontades individuais, foram as mesmas proclamadas como imperativas, impondo-as a essas vontades, instituindo-se formas de garantir a sua não violação, e, ocorrendo esta, o sancionamento dessa conduta desviante.
Ao sistema formado por essas normas de conduta social, assistido de protecção coactiva, chama-se o Direito. Não parece que possa existir Direito sem esse elemento de coercibilidade, ou seja sem essa limitação da liberdade a que a frase em análise faz referência para a rejeitar.
E sem um sistema jurídico, sem Direito, também não creio que possa existir sociedade humana.
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