O VALOR DA VIDA
Há mentes, a quem a ordem repugna e que, por isso mesmo, querem instalar a confusão no campo do pensamento. Alcançado esse propósito, o resto vem por acréscimo. Portanto, para lutar contra a iniquidade, temos de começar por desfazer ideias enganosas.
Assim, devemos defender a vida como um valor sagrado, mas ela não é um bem absoluto. Quando a própria alma, que é incomparavelmente mais valiosa que a vida física, só é imortal porque Deus, na sua potência ordinária, determinou não destruí-la, como é possível tratar como absoluto o que está sujeito à corrupção da matéria?
Por isso, o direito que protege a vida também não é um direito absoluto ou, caso se prefira, não há absolutamente um direito à vida. Eis porquê:
Se a vida fosse absolutamente um direito, como iria alguém defender-se legitimamente? É que o agressor seria titular de um direito absolutamente inviolável, por mais que estivesse atentando contra outro direito pretensamente absoluto, qual seja o direito à vida situado na esfera jurídica do defendente. Teríamos assim o paradoxo de um conflito entre dois absolutos que é resolvido a favor do defendente. Ora isto é um absurdo!
Não existem absolutos iguais, porque, mesmo no plano contingente, dois ou mais seres iguais confundem-se; a confusão impede a distinção; e não se distinguindo apareceriam como um só. Tão-pouco se disporão numa relação de hierarquia, porque repugna ao entendimento aceitar, como absoluto, o que está numa posição de inferioridade. Logo, o absoluto nem é igual, nem é diferente. O absoluto é isso mesmo --- absoluto. E, como tal, é único. Etimologicamente, significa desligado, solto, independente de tudo que o confine!
Acima de tudo isto, se o direito à vida fosse um direito absoluto, como iria Jesus Cristo oferecer-se à morte, para devolver ao homem a vida sobrenatural?
O que parece evidente é que um direito só se poderia dizer absoluto se se destinasse a proteger um bem absoluto. Mas só Deus é esse bem. E Deus não tem direitos --- ele é a causa fontal de todo o direito, tomado o direito como repositório da lei eterna. Deus governa o mundo dentro de uma ordem que emana d’Ele. É o Senhor do universo e tudo o mais lhe está subordinado.
Deus é o único Ser que existe a se ; nós vivemos ab alio. A vida, de que gozamos, só vale na medida e enquanto se conformar com a vontade divina. De resto, nem de outro modo se compreenderiam as palavras do Salvador: «O Filho do Homem segue o Seu caminho, como acerca d’Ele está escrito; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue; melhor seria para esse homem não ter nascido!» (1). Se a vida fosse um direito absoluto, esta sentença não teria qualquer sentido, porque não se apresentam alternativas ao absoluto.
Apenas nos termos, que ficam expostos, ou seja, quando se entende que não há um direito absoluto à vida, só nesta medida, insista-se, se pode compreender a abnegação da Mãe que se dispõe a dar à luz, arriscando-se a morrer; o heroísmo do soldado que cai em combate pela Pátria; e, finalmente, a constância do mártir que aceita a morte para defesa da Fé. Se a vida tivesse o valor absoluto que alguns lhe atribuem, aquela Mãe seria uma pobre dementada; o soldado, pouco menos que um suicida; e o mártir, um louco fanático!
Mas não é assim: todos eles agem para maior glória de Deus, de Quem receberam o dom da vida e a Quem a devolvem, numa oblação santa e pura.
Até aqui, a dádiva da vida e o valor da mesma, sempre sujeito aos limites impostos pela sua natureza intrínseca. Cabe agora falar dos atentados a este direito, do qual nem o seu titular pode directamente dispor.
De todos os crimes, que se podem perpetrar contra a vida, o mais repugnante é, sem dúvida, o crime de aborto.
Esse flagelo cresce ao mesmo tempo que o mundo, cada vez mais, fala na necessidade da paz. A paz é, com efeito, uma aspiração legítima e um bem precioso que todos devemos estimar. Mas a paz que seja fruto da justiça, e não uma aparência de paz que se respira no meio do odor de tanto sangue derramado.
É escusado ter ilusões: a paz, a verdadeira paz, não descerá à Terra inundada de sangue inocente. De todas as iniquidades praticadas pelo homem contra o seu próximo, o aborto é, seguramente, o pecado que maior abalo provoca na realização da paz em sociedade. Ele é mesmo a maior antítese da paz. Viola a lei eterna e a lei natural. E se é verdade que Deus perdoa quando o pecador dá sinais de arrependimento, o certo é que a natureza sempre faz pagar pelos erros cometidos. O aborto, tanto o que é clandestino, como o que se faz à luz do dia, carrega o coração de sombras e deixa o travo do remorso nas consciências que não estão completamente embotadas. Não sossega nem os seus fautores.
Nesse drama tormentoso, a principal vítima é o feto e, entre os que o praticam, é inegável que a Mãe pode ser a menos culpada, e até inculpada desde que se verifique alguma circunstância que dirima completamente a sua imputabilidade. Mas isto cai já no domínio da casuística e não retira ilicitude ao acto abortivo. Fora as vezes em que, por causas graves e observada a devida proporção, tem lugar o aborto indirecto, estamos sempre diante de um crime. E ainda naqueles casos-limite, o facto não se torna lícito: apenas há lugar para a teoria da não-exigibilidade.
Num país que tanto orgulho mostra por ter abolido a pena de morte, há imenso tempo, escapa à razão de quem estiver isento de preconceitos inconfessáveis que se chegue ao desatino de alargar a impunidade pelo extermínio de seres indefesos. Um homem que assassina outro homem tão ou mais robusto que ele, e o faz sem ser com felonia, revela ferocidade, mas também demonstra um mínimo de coragem, porque se expõe a ser morto antes de conseguir o seu intento. Para eliminar a vida num feto, chega a indiferença pelo sangue que se faz correr.
Em suma: o aborto é pecado porque vai contra a lei divina; é uma aberração porque infringe a ordem natural; e é indigno porque constitui uma cobardia!
Joaquim Maria Cymbron
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- Mt. 26,24.
JMC
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