sexta-feira, novembro 30, 2007

Abuso de poder corporativo ou ministerial?

Oprof. Vital Moreira, conhecido defensor da despenalização do aborto, veio defender, no "Público", do dia 20, que os médicos que consideram eticamente inaceitável a prática do aborto não podem "impor oficialmente os seus padrões de ética profissional aos demais profissionais que não compartilham desses valores e não desejam deixar de cumprir as suas obrigações profissionais"; que "nenhuma ordem profissional pode considerar infracção disciplinar a prática de actos profissionais não só lícitos, mas mesmo profissionalmente devidos (salvo objecção de consciência)"; que a recusa da Ordem dos Médicos a adaptar o seu código deontológico à lei "é inaceitável", é um "intolerável desafio à primazia da lei e do Estado de direito", é um "abuso de poder corporativo".

Com este discurso, esquece o ilustre constitucionalista que a Constituição continua a dispor que "a vida humana é inviolável" (art. 24.º). Obviamente, a vida humana deve ser protegida desde que existe vida humana. Há alguns (poucos) médicos que dizem que têm dúvidas sobre se o embrião (até às oito semanas) é um ser humano; mas nenhum médico conseguiu provar que o ser resultante da fecundação (ou concepção) não tem vida (como poderia, se as células se multiplicam a uma velocidade espantosa?) nem que esse ser vivo não é humano como poderia, se passadas poucas semanas o é, inequivocamente? Mudou de natureza? Em que momento e porquê? Ou seja, todos os médicos sabem, hoje, que o aborto equivale a matar um ser humano.

E todos os médicos sabem, hoje, que a chamada "interrupção voluntária da gravidez" causa, frequentemente, sofrimento à mulher aumenta em 30% o risco de cancro da mama, gera depressões, disfunção sexual, esterilidade, tendência para aborto espontâneo, etc. - males que os médicos têm o dever de tratar e prevenir.

Esquece o ilustre constitucionalista que, no referendo, se perguntava "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (…)". Ou seja, pretendeu-se tornar não punível e, portanto, lícito para a mulher (e, por arrastamento, para o médico e a parteira) abortar voluntariamente. Isso, pretendendo, alegadamente, acabar com o aborto clandestino e defender a "dignidade" da mulher. Não se perguntou se passaria a ser obrigatório para todos os médicos fazer abortos voluntários (salvo objecção de consciência - entre parênteses, como se esta fosse rara…) nem para todos os contribuintes pagá-los.

Esquece o ilustre constitucionalista que o resultado do referendo de 2007 não foi juridicamente vinculativo (porque votaram apenas 43,57% dos eleitores, tendo votado "sim" apenas 25,8% dos eleitores), embora seja politicamente relevante (como foi o de 28.6.1998).

Nega o ilustre constitucionalista que, acima da lei (aprovada pela maioria dos deputados ou pelos governantes), há valores de justiça e de consciência que merecem mais respeito do que as normas criadas pelos homens. Com tal atitude, manifesta um juspositivismo semelhante ao que esteve na origem do holocausto nazi e dos Gulags comunistas de tão má memória.

E declara uma intolerância que é tudo menos democrática.

Aliás, o recurso para o Tribunal Constitucional de impugnação da constitucionalidade da Lei n.º 16/2007, de 17.4, ainda não foi julgado.

Não é o Código deontológico aprovado pela Ordem dos Médicos (isto é, pela esmagadora maioria dos profissionais) que é abusivo, mas a tentativa de imposição ministerial de uma orientação ética que fere profundamente a consciência e a dignidade da maioria dos médicos.

Quando a lei é gravemente injusta, todos temos o direito constitucional (art. 21.º) e natural de resistência. Não queremos que os nossos netos nos condenem pelo holocausto dos fetos, a que estamos a assistir (e já lá vão mais de três mil, que Deus tenha em descanso) - como, hoje, muitos condenam os nossos pais e avós pelos males do fascismo e do comunismo. Todos nós precisamos que os médicos nos tratem da saúde, não que matem os nossos filhos.

* Luís Brito Correia
Advogado e ex-mandatário da Plataforma Não Obrigada