quinta-feira, novembro 30, 2006

O que não se fala no referendo

"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"

É frequente numa discussão acabar por esquecer-se o ponto de partida.
Assim acontece notoriamente no caso do referendo que se anuncia, em que o debate geralmente se afasta do teor exacto da pergunta que é colocada à votação, e foge das consequências das respostas possíveis.
Normalmente discute-se o aborto, em abstracto, no registo "eu acho que", perdendo-se a noção de que o referendo incide sobre uma pergunta em concreto, da qual deverão em princípio decorrer consequências legislativas.
Imagine-se a resposta sim.
Os que prontamente declaram querer votar sim (isto é, que concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado) admitem que a sua resposta signifique concordância com a penalização do acto quando praticado fora de estabelecimento de saúde legalmente autorizado? E são pela penalização do acto quando praticado após as primeiras dez semanas?
A lei penal deve portanto manter a pena para a interrupção voluntária da gravidez que seja realizada após as primeiras dez semanas e/ou fora de estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
É o que resulta iniludivelmente da interpretação a contrario da pergunta em análise...
Pelo que lhes ouço, creio sinceramente que não é este o significado que dão ao sim os mais empenhados defensores dessa opção.
Porém, é essa a pergunta que é colocada a todos os votantes. E, tal como está, verificando qual o sentido mais comum que o mais comum dos falantes do português pode extrair da fórmula, não há dúvida que ao perguntar pela concordância para uma despenalização em certas condições dadas está a pressupor-se a estabilidade da penalização para os casos que se situem fora desse âmbito restrito.
Ora sendo assim é legítimo concluir que a pergunta referendada pode distorcer os resultados da votação, no sentido de facilitar a resposta sim.
Bastava que a pergunta fosse composta do verso e do reverso para os resultados serem bem diferentes.
"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, mantendo-se a penalização qundo não se verifiquem tais requisitos?"
Nesta formulação o sim significava inequivocamente concordância com a punição da interrupção voluntária da gravidez realizada ou para além das dez primeiras semanas, ou fora de estabelecimento legalmente autorizado. Mas quantos dos entusiastas do sim continuariam a manter a sua resposta?
Se a minha observação está correcta, o resultado sim parece conduzir a um impasse político. Com efeito, a legislação ordinária que deverá conformar-se com o que resulta da pergunta aprovada não satisfará os mais ardentes partidários do sim. Só pode estar de acordo com a perspectiva dos que votarão sim convencidos de que estão a dizer sim apenas ao que está expresso, e que votariam não se lhes fosse posta a questão em termos de o seu sim implicar também concordância com o que ali não está.
Como é fácil de calcular, se vier a acontecer essa conformidade legislativa com o sim que é referendado (continuarão então a ser julgados e punidos todos os abortos clandestinos, que serão todos os praticados fora dos tais estabelecimentos autorizados e todos os efectuados para além das dez primeiras semanas) nada se modificará na actuação política dos actuais combatentes pelo sim. Eles não aceitarão que "as mulheres sejam julgadas", que a "interrupção voluntária da gravidez" seja punível, seja o acto praticado onde for e seja qual for o tempo de gestação do feto.
O que vale por dizer que a luta vai continuar. Indefinidamente.
Teria sido bom que quem se pronunciou pela clareza e constitucionalidade da pergunta tivesse prevenido estes aspectos, que não me parecem dispiciendos.
Para não maçar, desisto de entrar pelas questões relacionadas com a protecção da vida imposta pelo art. 24º da CRP e o futuro estatuto jurídico do embrião. Na verdade, se não existir protecção penal para o embrião (até às dez semanas de vida estará inteiramente na disponibilidade da progenitora, que o poderá destruir por simples acto de vontade, independentemente de qualquer causa ou justificação), e não for estabelecida outra qualquer forma de tutela jurídica desses bens (presumo que bens jurídicos ainda serão), qual será então a sua natureza jurídica? Coisas? E se forem coisas, devem considerar-se in comercium ou extra comercium? Repare-se que esta distinção teórica de res extra comercium ou res in comercium se revestirá da maior relevância prática, já que como se sabe existem interesses económicos na utilização dos embriões.
E como se irá harmonizar a legislação acerca dos embriões produzidos laboratorialmente, segundo técnicas de reprodução artificial, v. g. fruto de fertilização in vitro ou clonagem, com a situação jurídica dos embriões gerados naturalmente? Acontecerá que uns gozarão de protecção jurídica e outros não?
São muitas perplexidades para um bloguista só.